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O BBB e os gripários

O BBB e os gripários

Seja política, eleições, polarização, racismo, economia, preconceitos, identitarismo, igualdade ou desigualdade socioeconômica, tudo, todos os temas discutidos no país parecem obrigatoriamente passar pelo filtro da abordagem do Big Brother

O BBB e os gripários

Foto: Reprodução Jornal da Metropole

Por: Malu Fontes no dia 20 de janeiro de 2022 às 10:04

Por um bom tempo as pessoas comuns podem respirar um tantinho mais aliviadas quanto a fazer ou dizer coisas nas redes sociais sem precisar serem originais. Afinal, o país agora tem um foco, um tema em comum para atrair a atenção e a ira até de quem diz não suportar o programa e chega ao ponto de desejar, em público, que todos lá dentro contraiam Covid e ninguém saia vivo, como fez esta semana uma autoridade em saúde pública. Ironias ou exageros à parte, está no ar, ao vivo, 24 horas por dia, o BBB22. 

Embora muita gente adore e precise anunciar ao mundo que o reality é tudo de pior do mundo do entretenimento e tals, a Rede Globo, anunciantes e patrocinadores não têm motivos para lamentos. O sucesso do programa é absoluto, em faturamento e audiência. Mesmo quem tem zero interesse no assunto não consegue se manter desinformado sobre o que acontece na casa cenário do Projac onde são confinadas as 20 pessoas desta edição. Até agora, 17, pois três dos selecionados estão contaminados com o vírus da Covid e só poderão entrar para participar após a ausência do agente no organismo. Não se pode usar aplicativo de conversa, redes sociais, entrar em sites, ver TV, ler jornais, usar e-mail sem ser simultaneamente bombardeado com uma quantidade absurda de informações sobre o BBB. 

Seja política, eleições, polarização, racismo, economia, preconceitos, identitarismo, igualdade ou desigualdade socioeconômica, tudo, todos os temas discutidos no país parecem obrigatoriamente passar pelo filtro da abordagem do Big Brother. O programa parece agendar a esfera pública nacional mais do que a imprensa faz. Como as novelas até a década de 80, que atingiam um nível de adesão temática na sociedade brasileira perto dos 100%, o reality tornou-se um centro propagador de debates, dos mais sérios aos mais inúteis. Tudo sai da tal casa. E cada fala ou cena atinge picos em recirculação e espalhamento.  


Nesse janeiro esquisito, no auge de um verão que sobrepõe as férias de muita gente, o calor de matar, o movimento do foda-se o vírus e vamos todos para a rua, para a praia e para os bares mesmo com um índice de contágio de covid jamais visto nos dois últimos anos, os brasis da televisão e das ruas giram em torno dessas duas engrenagens: nas telas, as rações temáticas ofertadas como entretenimento no BBB e às quais todos parecem se sentir obrigados a regir. E a interagir com. Inclusive este texto. Nas ruas, que também têm pedacinhos expostos nas telas, as pessoas reais estão, neste janeiro, atravessadas pela doença.


As cenas diárias de filas com centenas de pessoas desde as madrugadas em busca de um teste nos postos de saúde e gripários parecem outro reality, de tanto que se aproximam de testes de resistência. Como o índice de contaminação é gigantesco e quem adoece precisa de um diagnóstico, de um atestado médico para justificar a ausência no trabalho ou se socorro médico - quando não são das três coisas juntas-, para onde a maioria vai? Por mais que as secretarias municipais de saúde expliquem quem deve ir para posto de saúde, para gripário e para emergência ou hospitais, gerais ou especializados, a vida real impede que a população possa se dar ao luxo de fazer esta ou aquela consideração e vai todo mundo para a primeira porta onde se lide com atendimento e saúde.

SUNGA E BARATAS

Embora o número de mortos tenha seja hoje baixo em em relação aos índices do auge da pandemia, quem adoece sente o contágio associado aos riscos e não à queda dos percentuais de agravamento por conta da vacina ou pelo baixo risco de morte até então associado à variante Ômicron. Os percentuais de agravamento caíram? Muito. Mas se há mais gente contaminada do que jamais houve, mesmo percentuais baixos de números altíssimos podem colapsar o sistema de saúde. Além disso, é enorme o número de profissionais de saúde simultaneamente em casa, com atestado médico por estarem contaminados. É prova de resistência física e psíquica todos os dias. 

Nos gripados, profissionais de saúde são ameaçados, apanham, são trancados em salas por pacientes ou familiares coléricos e desesperados. Do outro lado, são filas de gente que não consegue sequer cruzar a porta de entrada de uma instituição de saúde. Como não se trata da lógica do mocinho e do bandido nem de torcida por quem resiste aos testes de resistência, é só o horror brasileiro assistir na TV do telejornal pessoas desmaiando doentes em filas de testes. Talvez o apelo tão grande por ver o neto de Silvio Santos de sunga ou uma cantora sertaneja matando barata com o pé descalço seja por isso: quem aguenta, sem entretenimento, ver tanto Brasil real? Melhor o do reality.