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Henry, Miguel e o patrimonialismo que não morre

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Henry, Miguel e o patrimonialismo que não morre

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas, professora da Facom/UFBA e colaboradora da Rádio Metrópole

Henry, Miguel e o patrimonialismo que não morre

Foto: Angelucci Figueiredo/Divulgação

Por: Malu Fontes no dia 15 de abril de 2021 às 11:08

Uma das razões para a babá do menino Henry Borel ter mentido para a polícia em seu primeiro depoimento, omitindo os maus-tratos que ele sofria do padrasto e a omissão da mãe, agora presos e acusados de homicídio, foi, além da coerção do casal, da família dos dois e do advogado, a situação empregatícia dos seus parentes. Ela própria, a mãe, o noivo, um tio e uma tia ou são empregados da família do vereador Jairinho ou têm empregos arranjados por ele na Prefeitura do Rio de Janeiro.

Os parentes da babá foram empregados na gestão do ex-prefeito Marcelo Crivella, de quem o Dr. Jairinho, vereador no 5º mandato no Rio de Janeiro, era líder na Câmara Municipal. A mãe do menino, namorada do vereador há cerca de seis meses, era professora da rede pública municipal. Ao engatar o romance com o político e ir morar com ele, também conseguiu um emprego público, claro. Foi indicada para um cargo de confiança no Tribunal de Contas do Município, com um salário de 14 mil reais. Era, ao que se sabe até agora, um cargo, um emprego, não um trabalho. A diferença entre as duas coisas? Não precisar ir ao TCM e nem fazer nada. 

Não há como ver essas informações da confusão oportunista entre a vida pública e a privada do vereador, emergindo no contexto da investigação policial da morte de uma criança de quatro anos, e não lembrar da morte de outro menino, cuja investigação também revelou artimanhas que a casa grande usa embaixo de seus tapetes para drenar dinheiro do estado e manter seus privilégios de classe média, cercada de serviçais pagos com o dinheiro do contribuinte. Em junho do ano passado, o menino Miguel Otávio morreu ao cair do 9º andar de uma janela dos edifícios mais caros de Recife. 

Miguel tinha cinco anos e era filho da empregada doméstica Mirtes Souza. O Brasil já estava no meio da pandemia, e Mirtes, por não ter com quem deixar o filho e ter que trabalhar, levou a criança para a casa da patroa naquele dia. Ao descer para levar o cachorro dos patrões para passear, deixou o filho com a patroa, Sari Corte Real, que fazia as unhas com uma manicure, em domicílio. Miguel chamou pela mãe, insistiu. Sari perdeu a paciência e deixou o menino ficar no elevador, sozinho. O resto da história, todo mundo sabe. 

O que talvez muitos já não lembrem é do detalhe que aproxima o caso Miguel do caso Henry, não pela tipologia da tragédia em si, mas pelos métodos semelhantes vistos nos dois casos, usados por dois homens públicos, com mandato eletivo e, consequentemente, com poder para se apropriar do estado como bem queriam. O patrão de Mirtes, Sérgio Hacker, era o então prefeito de Itamaracá, município da região metropolitana de Recife. Com a morte de Miguel, durante as investigações, descobriu-se que Mirtes e a mãe dela, embora trabalhassem em funções domésticas na casa do prefeito, estavam na folha de pagamento da prefeitura, eram pagas pelo poder público. 

RAPINAGEM - Agora, a morte de Henry trouxe à tona outro caso, entre os milhares e milhares de tantos parecidos que a gente sabe ou desconhece, de homens públicos que atualizam todos os dias o patrimonialismo, essa falta de interdição entre o que é público e o que é privado. Esse costume das autoridades brasileiras se apropriarem do que é público vigora desde o Brasil colonial, quando os poderosos tinham como método uma espécie de extrativismo de rapinagem. Arrancar da colônia e em nome da Coroa o máximo que pudessem. 

Com cinco mandatos e poderoso como era, com relações próximas com todas as autoridades do Rio, do governador aos empresários da área de saúde, do ex-prefeito ao atual, Jairinho certamente deve ter enfiado muitos protegidos nas folhas de pagamento do poder público da cidade e do estado. Não fosse a tecnologia para recuperar as conversas apagadas nos celulares da mãe de Henry e da babá, os empregos públicos da família da moça estariam até agora contribuindo para acobertar os bastidores de um crime contra uma criança.