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Terça da Bênção: 40 anos da festa que inventou o Pelô

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Terça da Bênção: 40 anos da festa que inventou o Pelô

Criado pelo Projeto Cultural Cantina da Lua, o evento ficou eternamente vinculado ao Olodum, que levou sua fama para o mundo

Terça da Bênção: 40 anos da festa que inventou o Pelô

Foto: Acervo Pessoal

Por: James Martins no dia 28 de outubro de 2023 às 10:05

Atualizado: no dia 31 de outubro de 2023 às 08:16

A última grande reforma do conjunto arquitetônico do Pelourinho aconteceu em 1993, durante o governo de Antônio Carlos Magalhães, ACM. Não por acaso, 10 anos antes, mais precisamente em 28 de outubro de 1983, nascia o evento que foi certamente um dos principais chamarizes das atenções para a localidade, para o então denominado Pelourinho Maciel, mola propulsora da revitalização: a Terça da Bênção, que na verdade nasceu como Festa da Bênção, na Cantina da Lua.

Isso mesmo. Em meio a memórias e desmemórias, nenhuma versão é tão bem documentada como a de Clarindo Silva, dono do bar, e criador do Projeto Cultural Cantina da Lua, d’onde se originou a festa. Antes, porém, um pouquinho de contexto sobre o Pelourinho daquele período. Desde meados dos anos 1970, a região sofria descaso e abandono, não só dos poderes públicos como da sociedade civil. 

“O Pelourinho era lugar aonde ninguém ia, exceto homens procurando putas baratas e doentes em casas deterioradas. Eu ia sempre, olhar, e me achavam maluco”, lembra o cantor e compositor Caetano Veloso.


Público da Bênção, anos 1980.

Naquele período houve a transferência da Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus para o Campus da Universidade Federal da Bahia no Canela, o fechamento do prédio do Incra e a tentativa de desativação do terminal de ônibus da Praça da Sé. E é na intenção de barrar esse esvaziamento que surgem a associação Revicentro e outros projetos semelhantes. Valendo lembrar que o Grupo Cultural Olodum foi criado em 25 de abril de 1979, na casa de número 11 da rua Santa Isabel, residência do babalorixá Martins Lopes, conhecido por todos como Seu Martin.

De volta à Terça da Bênção, havia todo um contexto para o seu surgimento. O próprio Clarindo descreve: "Na realidade, já existia a bênção da Igreja de São Francisco, todas as terças-feiras. Só que, com o processo de esvaziamento, deu uma enfraquecida". Um dos frequentadores destas terças no Terreiro de Jesus era o ator Jorge Washington, que descreve: “Ficavam os grupinhos, incluindo a galera do movimento negro, do MNU, Gilberto Leal, Bujão, França, Jônatas Conceição, Ana Célia… E daí começa um movimento de samba, depois o Bar do Reggae passa a fazer eventos dias de terça-feira também, a galera começa a sair do Terreiro e descer pro Bar do Reggae, e tudo isso foi criando corpo”.


Clarindo e Paulinho Camafeu, 1990.

"No início, a Festa da Bênção foi totalmente desacreditada. Apesar da participação dos 11 de Ouro, não deu 100 pessoas na frente do palco", conta seu Clarindo, referindo-se ao grupo que juntou os seguintes sambistas: Batatinha, Riachão, Edil Pacheco, Ederaldo Gentil, Claudete Macedo, Tuninha Luna, Walmir Lima, Paulinho Camafeu, Nelson Rufino, Tião Motorista e Bob Laô. 

E arremata: "Tanto assim, que um dos diretores me pediu pra tirar o nome dele da ata de direção, pois ele viu aquilo como um projeto falido".

Persistente, o comerciante e agitador cultural deu prosseguimento ao evento e, quando o mesmo completou um ano, veio a cartada certa. "No primeiro aniversário da Festa da Bênção, a gente trouxe Zezé Motta, que era a grande estrela da novela Rosa Baiana. Deu mais de 2 mil pessoas! E isso me estimulou a convidar o Olodum, que ensaiava nos fundos do Teatro Miguel Sant’Anna, pra mesma praça. Eles aceitaram de bom grado. E convidei também os Filhos de Gandhy, que só se reuniam no carnaval. Chamei Djalma Passos e propus, como a maioria dos membros eram idosos, fazer uma Seresta do Gandhy. Ele era estivador, muito entusiasmado, deu um tapa na mesa e topou na hora", diz Clarindo.

Fato é que a inicialmente desacreditada Festa da Bênção se transformou na pulsante Terça da Benção, sendo o principal catalisador de forças para a já citada reestruturação do Centro Histórico de Salvador. Reforma que, por mais ressalvas que possam e devam ser feitas, “significou mudança na autoestima da cidade”, opina Caetano. Processo que transformou o Pelourinho em Pelô, criou essa nova instância, num processo linguístico (o mesmo que nos ônibus transforma o motorista em motô) cheio de ressonâncias estéticas e sócio-culturais, e está referendado na música “Alegria Geral” (Itamar Tropicália, Alberto Pitta e Moço Pop), do próprio Olodum: “Todos os domingos e terças-feiras / Tem samba de roda e capoeira. / Domingo tem Olodum no Pelô, / Na terça, tem a Bênção do Senhor, / O Pelourinho se transforma em carnaval / Nesse momento a alegria é geral”.

"De 1983 a 91, nós fizemos 800 shows ali na praça", enumera Clarindo Silva.

“Eu subia direto, com uma equipe lá da Suburbana, toda terça pro Pelô. Mas eu já peguei nos anos 90: 96, 97, 98. Ficava cheio, lotado na verdade. O cravinho, a galera, não tinha tanta violência na cidade, era gostoso demais, o Pelourinho parecia até que era mais nosso”, diz Gilmar Arouca, eletricista, lembrando os velhos tempos.

Jorge Washington chama atenção para outro aspecto: “No fim dos anos 80 e início dos anos 90, todas as movimentações políticas do movimento negro, contra o 13 de maio, e outras, saíam dali da Bênção. O sistema percebeu e aí foi virando festa… Teve um dia que botaram um trio-elétrico na porta da Faculdade de Medicina. Aí eu falei, ‘Ih, maluco, fodeu, acabou a Bênção. O ensaio do Olodum se tornou um evento pra classe-média e desvirtuou tudo”.

Falando sobre os tempos atuais, de Pelourinho novamente esvaziado, o ator, que é membro do Bando de Teatro Olodum, puxa pela raiz: “Agora, assim, a galera que frequenta o Cravinho de Jolival, no Terreiro, e o Cravinho do Carlinhos, esses aí são fiéis. Assim como resenha da Bancada do Feijão, lá de Alaíde, toda terça-feira é sagrada. Sai de Alaíde e vem pro Negro’s Bar, de Albino, e é cachaça até umas horas. Essa parte aí ninguém conseguiu mexer”.