
Cultura
Prestes a completar 60 anos, Lanches Clayton é relíquia do Centro Histórico
O local serviu de abrigo para estudantes durante o Golpe Militar de 64 e até hoje é um porto seguro para a comunidade

Foto: James Martins / Metropress
Das 5 da manhã até as 19 horas, todos os que têm fome no Pelourinho e adjacências dão uma passadinha em Lanches Clayton, a lanchonete no Terreiro de Jesus, n° 7, que há quase 60 anos é referência em café da manhã, almoço rápido, merenda da tarde e jantar leve no Centro Histórico. Fundada em 30 de março de 1964, em plena articulação do famoso Golpe Militar que iniciou a ditadura, a casa serviu de abrigo para os alunos da Faculdade de Medicina da Bahia e até hoje é realmente uma espécie de porto seguro, ponto de acolhimento de toda a comunidade e seus variados apetites. “Enquanto os estudantes estavam tomando porrada lá, meu pai estava abrindo aqui”, relata Clayton, o herdeiro-proprietário, em referência ao fundador, o popular Seu Antônio.
Comer e conversar. Para isso entram pela portinha, espremida entre as esquinas da Praça da Sé e da Rua do Saldanha, gente de todo tipo: capoeiristas, camelôs, dançarinas, sacerdotes, escriturários, soldados de polícia, ladrões, sacizeiros, baianas de acarajé e de figuração, gerentes de loja, barbeiros, poetas, putas, artesãos, políticos, restauradores etc etc etc. “Eu tinha um monte de fotos, inclusive dos capoeiristas antigos, como Vermelho, lembra dele?, mas dei tudo…”, recorda Clayton, conhecido por todos não apenas por ter o seu nome talhado na placa de madeira, mas por estar realmente próximo e atento à clientela.
“Eu frequento aqui desde menino. Venho lá do 2 de Julho. Gosto de tudo. Para mim, isso aqui é resistência, cultura”, diz Lula, 60 anos, freguês antigo, enquanto traça um prato de aipim com ovo (R$10) e uma xícara de café com leite (R$3).
Clayton e Lula riem juntos, cada um de seu lado do balcão.
Aipim, por sinal, é o carro-chefe do estabelecimento, seja puro, com manteiga, com ovos, com ensopado de carne. Mas saem sanduíches, salgados, bolos, banana da terra cozida, cuscuz, ovos cozidos, sucos diversos, refrigerantes e uma providencial cervejinha para desanuviar as ideias. E o melhor: tudo com precinho camarada, de bairro, que a gente até esquece estar num dos pontos mais turísticos da cidade. Apesar da presença dos gringos espertos que também frequentam e se encantam.
“Realmente, o clima aqui é bem acolhedor, eu diria até familiar. Os trabalhadores da região sempre se socorreram aqui e os outros foram descobrindo e se adaptando. Por isso é tão gostoso, especialmente no fim de tarde”, opina o artesão e designer Rai Luz. E, de fato, a fauna é bastante variada, inclusive em relação ao poder aquisitivo da clientela: de gente que sua pelos 2 reais do copo de café, até quem ganha em euro e poderia pagar a conta de todo mundo. Mas nada disso gerou mudança no perfil nem aumento de preços.
E por falar em perfil, uma curiosidade: pagamento só em dinheiro! Nada de crédito, débito ou pix.
Pagamento só em dinheiro!
Questionado sobre o motivo da decisão, numa época em que até o Bar Cruz do Pascoal aceita pagamento digital, Clayton desconversa: “Internet aqui é ruim. As paredes são estreitas, não pega direito”. E quando chega alguém desavisado, come e bebe e não tem dinheiro vivo, como é que faz? “Paga depois”, diz ele, com tranquilidade.
E a se medir pelo grau de intimidade com que todos se relacionam com ele e os 7 funcionários da casa, deve ser bastante natural voltar e pagar depois. Por um motivo ou por outro. Falando em funcionário, é forçoso destacar William, que lembra de todos os pedidos, faz a conta com uma agilidade de dar inveja em Oswald de Souza, e desembola o balcão nos horários de pico. “Já estou aqui há mais de 20 anos, peguei o jeito e adianto o lado”, brinca ele, simpático.
William adianta o lado da galera com desenvoltura.
No meio da freguesia há personagens marcantes da região, alguns falecidos como Teka Show e Jayme Figura (“o café dele já ficava pago, por Giba, do Batalá”) outros bem vivos, como o barbeiro Zé do Pelô, Mestre King Kong e o artista plástico Alberto Pitta, fundador do Cortejo Afro. Uma confusão ou outra sempre acontece, uma discussão mais acalorada ou um pedido desaforado por fiado, mas tudo só reforça o caráter do lugar e sua resistência.
Fato é que vez ou outra somos levados a discutir alguma crise do Pelourinho em especial ou do Centro Histórico em geral. Reclamar do esvaziamento ou da gentrificação. Soluções brilhantes e/ou não tão brilhantes assim são expostas, acatadas, contestadas. Enquanto isso, Lanches Clayton está imune em sua rotina. Horas mais, horas menos cheio, mas sempre íntegro, contribuindo para que não se perca o senso de comunidade do lugar. Ali o turista vira baiano rapidinho. E sem necessidade de folclorização.
Quase 60 anos numa cidade em que 25 já é um século e onde quase tudo fecha muito antes é uma consagração merecida.
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