
Cultura
Esquecimento produzido: descoberta do possível maior cemitério de escravizados da América Latina revela apagamento intencional da história
Com estimativa de mais de 100 mil corpos enterrados, localização foi identificada por pesquisadora após cruzamento de mapas do século XVIII; ossadas estavam soterradas a três metros de profundidade

Foto: Foto: Silvana Olivieri
O que parecia apenas um estacionamento do Complexo da Pupileira, em Salvador, pode ser o maior cemitério de pessoas escravizadas da América Latina. A arquiteta e urbanista Silvana Olivieri liderou a pesquisa que levou à redescoberta do espaço nas últimas semanas, hoje reconhecido como sítio arqueológico. Além de fragmentos de cerâmica, faianças e telhas, ossadas foram encontradas a quase três metros de profundidade — o que chamou atenção pela tentativa de soterramento do que já estava enterrado. A profundidade, incomum em cemitérios semelhantes, evidencia o esforço deliberado em apagar a existência do lugar ao mesmo tempo que reflete a perversidade a qual aqueles corpos foram submetidos, sendo empilhados e enterrados em covas rasas, jogados ao esquecimento.
Origem da pesquisa
A investigação começou com uma pergunta: haveria em Salvador um cemitério como o que Silvana Olivieri viu em Belém, destinado a pessoas negras, indígenas e indigentes? “Voltei obcecada. Fui atrás de mapas raros, sobrepus com imagens de satélite e vi que o local estava sob a Pupileira”, conta. A descoberta documental, cruzando mapas do século XVIII e registros históricos, foi consolidada em um dossiê enviado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), com apoio do professor Samuel Vida. A identificação da área foi feita em apenas duas semanas, embora todo o processo tenha durado um ano.
Foto: Silvana Olivieri
100 mil mortos em 2 mil metros
A estimativa é de que mais de 100 mil pessoas estejam sepultadas ali. A conta se baseia nos livros de Banguê da Santa Casa — registros do transporte de corpos em caixões simples e baratos — e nos relatos sobre corpos abandonados à noite, em esteiras, ao redor do cemitério, por familiares que não tinham como dar enterros e sepultamentos dignos aos mortos. “Era mais depósito do que cemitério. As valas comuns, os corpos empilhados, tudo isso em uma área que nem chega a 2 mil m²”, relata a pesquisadora. A comparação com o Cemitério dos Pretos Novos, no Rio de Janeiro, que funcionou por menos tempo e tem estimativa de 60 mil sepultamentos, reforça a dimensão da descoberta baiana.
Apagamento arquitetado
Para Olivieri, o local tem potencial para reescrever a história da escravidão no Brasil e exige que Salvador repense sua própria identidade. Ela acredita que a capital baiana precisa ser outra depois da descoberta, pois há uma naturalização por não saber onde enterraram centenas de milhares de pessoas negras. Segundo a pesquisadora, o esquecimento não foi por acaso: foi produzido pelas elites brancas como parte de um projeto de silenciamento. “É uma herança viva do racismo colonial. Uma cidade construída sobre os ossos de quem ela explora até hoje”, diz.
Novo registro e possibilidade de expansão
Desde abril, o espaço está cadastrado oficialmente como o Sítio Arqueológico Cemitério dos Africanos no IPHAN. Isso significa proteção legal imediata, mesmo estando em terreno privado. A utilização atual como estacionamento é considerada inadequada e danosa. “Os vestígios estão frágeis, devido ao peso do aterro e à acidez do solo. O espaço precisa ser respeitado como território sagrado e histórico”, defende Silvana. Uma nova etapa da pesquisa deve ser iniciada, com escavações mais amplas e participação direta das comunidades negras. Há possibilidade de o cemitério se estender até a Avenida Joana Angélica.
Patrimônio e reparação: com quem fica a guarda do cemitério
Para o Ministério Público da Bahia (MP-BA), a descoberta impõe um novo paradigma sobre a preservação da memória da escravidão. Segundo o promotor Alan Cedraz, do Núcleo de Defesa do Patrimônio Histórico (Nudephac), o local é um bem arqueológico de interesse público e pertencente à União, mesmo estando em área privada. O MP defende uma gestão compartilhada, mas, até o momento, aguarda o relatório final da pesquisa para propor uma audiência pública sobre o futuro do espaço.
A atuação do MP pode abrir precedente para reavaliações semelhantes em outras áreas negligenciadas da Bahia. Ainda que aqueles corpos não tenham recebido o menor dos processos em rituais pós-morte, religiosos ou não, Olivieri reforça que o que está em jogo é mais do que história, “é o direito ao luto, à memória e à verdade. Esses corpos precisam, enfim, descansar em paz”.
Foto: Silvana Olivieri
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