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Dez anos sem Ramiro Musotto: de Bahía Blanca à Bahia preta

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Dez anos sem Ramiro Musotto: de Bahía Blanca à Bahia preta

Morto em 11 de setembro de 2009, o percussionista argentino foi um dos maiores conhecedores da música afro-baiana

Dez anos sem Ramiro Musotto: de Bahía Blanca à Bahia preta

Foto: Divulgação

Por: James Martins no dia 11 de setembro de 2019 às 08:10

Há exatos 10 anos, no dia 11 de setembro de 2009, morria o percussionista Ramiro Musotto, aos 45 anos, vítima de um câncer no pâncreas. Talvez o mundo, que então rememorava os atentados às Torres Gêmeas de Manhattan, não tivesse real dimensão daquela perda, mas, de fato, o percussionista argentino, além de ser muito mais baiano que muito baiano, era também uma espécie de torre: estrutura sólida que parte do chão e chega bem perto de tocar o céu. 

Ramiro José Musotto nasceu em La Plata, Argentina, em 1963, mas foi criado em Bahía Blanca, região da Patagônia, onde ganhou de seu pai o primeiro instrumento musical: um bombo legüero — tambor regional que tem esse nome porque pode ser ouvido a léguas de distância. Ali começava a se plasmar o artista que veio se engajar perfeitamente (quilômetros e quilômetros de distância) à Bahia preta. E mais: que a desenvolveu.

“Ele pesquisou como ninguém as batidas dos blocos afros. E teve um papel fundamental nos estúdios de gravação, com os ritmos percussivos. Isso porque vivia verdadeiramente os tambores de rua”, destaca Mestre Jackson, um dos principais percussionistas da Bahia. E completa: “Falo assim porque Ramiro percebeu que, além do samba-reggae do Olodum, existia uma batida, que ele amou como ninguém, que chamamos hoje de batida do Ilê. Esse ritmo é exatamente o que todos os blocos tocaram”.


Recém chegado, o gringo se infiltrou no Centro Histórico.

Antes de vir a Salvador, porém, Ramiro Musotto seguiu o conselho do violonista Paulo Bellinati e estudou percussão brasileira, em São Paulo, com Zé Eduardo Nazário. À Bahia ele chegou em 1984 e rapidamente se entrosou ao ambiente carnavalesco. Morou no Pelourinho, o coração rítmico da cidade, com Toinho Batera. E naquele mesmo ano passou a compor a Banda Salamandra, do bloco Camaleão, onde formava o set de percussão com Carlinhos Brown e Tony Mola. É dele ainda a programação de bateria (e a percussão) da histórica “Eu Sou Negão (Macuxi, Muita Onda)”, de Gerônimo, verdadeiro divisor de águas da música baiana. 

“Tive o prazer de conhecê-lo em pleno mangue (Pelourinho), cheio de vontade de aprender os ritmos afrodescendentes e, rapidamente, com capacidade notável, um branco argentino cheio de suingue, ele fez com que seu talento acrescentasse mais condimento à música baiana”, testemunha o autor de “Lambada da Delícia”. Gerônimo, que teve (“com muita honra”) Ramiro na Banda Mont’Serrat, no início do movimento Axé Music, destaca a participação do hermano na gênese do samba-reggae.  

“Ele é responsável por introduzir no samba-reggae a variação rítmica latino-hispânica, passando pra Neguinho do Samba as formas 1.2.1,2,3 e 123.1,2. Essa linguagem, quem é percussionista vai entender”, disse em entrevista ao Metro1. Já no filme “Axé - Canto do Povo de um Lugar”, de Chico Kertész, o compositor vai mais longe e atribui ao argentino uma colaboração verdadeiramente seminal: “Ele virou e disse: Ó, Neguinho, por que você não bota isso no samba-reggae?”, refere-se à célula do guaguancó: pá-pá-papapá. Há quem acredite e quem duvide da versão.


Tony Mola, C. Brown, Ramiro, Toinho Batera e Waltinho, anos 1980.
 
Não importa. Independente de eventos específicos, o fato é que ninguém combinou como Ramiro Musotto, entre nós, a tecnologia eletrônica-digital com o artesanato ancestral, sendo ao mesmo tempo um pioneiro da programação (o primeiro, junto com Liminha, a ter e pilotar uma bateria MPC no Brasil) e o seguidor-superador de Naná Vasconcelos nas sondagens do berimbau. Os arranjos que ele fez para “Doing It To Death”, de James Brown, no álbum de estreia de Lucas Santtana, “Eletro Ben Dodô” (1999) e “Noite de Temporal” (Dorival Caymmi), na voz de Virgínia Rodrigues, são exemplos prodigiosos dessa modernidade atemporal.

Outro marco da música baiana que tem o dedo, ou melhor, as mãos do percussionista argentino, é “Um Canto Pra Subir”, de Margareth Menezes. Gravado entre 1988/89, o disco é avant-garde na mistura de tambor com eletrônica e já traz também os berimbaus polifônicos/harmonizados na faixa “Hino das Águas” (Aroldo Medeiros e Buziga). Foi a partir daí que David Byrne convidou Maga para uma turnê internacional que alavancou sua carreira. Ela, inclusive, conta uma história mercosulisticamente curiosa:

“No final da música ‘Abra a Boca e Feche os Olhos’, de Gerônimo e Dito, ele introduziu no arranjo uma citação do Hino da Argentina. Aí, quando eu estive lá e cantei, em turnê com David Byrne, o pessoal veio me cumprimentar, porque eu tinha botado o hino deles em uma música e tal..., mas eu nem sabia (risos), foi uma arte de Ramiro!”, lembra a cantora.

E, mesmo sabendo que é impossível enumerar nesse espaço todos os feitos importantes de Ramiro Musotto para o desenvolvimento de nossa indústria musical, não podemos deixar de citar pelo menos mais um: “O Canto da Cidade”. O segundo álbum solo de Daniela Mercury tem produção assinada por Liminha, mas, quem conhece o universo percussivo baiano e sua aplicação naqueles arranjos, percebe com facilidade que o cara ali foi o gringo do Pelourinho.


Uma mostra do Olodum que Ramiro Musotto encontrou em sua chegada.    

Sobre a música de maior sucesso, a própria cantora depôs: “O que ele fez em ‘O Mais Belo dos Belos’ é escandaloso! Gravou tudo praticamente sozinho, dezenas de instrumentos, com uma pequena ajuda de outro percussionista [na verdade, dois: Mestre Jackson no repique e Mestre Prego no apito] e o resultado é que soa como se fosse o Ilê Aiyê inteiro”.

Tudo ia muito bem, mas nem só de música baiana vive o homem e, um belo dia, o mesmo ímpeto que trouxe Ramiro a Salvador o levou ao Rio de Janeiro. “Ele tinha um espírito nômade, naturalmente. E é bom destacar que a importância que ele conquistou no Rio é igual ou até maior que a que ele tem na Bahia”, afirma o também músico e produtor Jonga Cunha. “Lulu Santos, Skank, Lenine, Marina… todos até hoje sentem muita falta de Ramiro, por tudo o que ele fez e representava”, completa.

Com o pernambucano Lenine, Ramiro colaborou no excelente “In Cité” (2004), gravado ao vivo em Paris e que tem ainda a presença da baixista cubana Yusa. Em conversa com o Metro1, Lenine diz: “Ele foi fundamental no conceito daquele projeto, um músico incrível. Eu o chamei porque já conhecia o projeto dele ‘Sudaka’, um projeto lindo de música, ele como autor e produtor”. E continua, destacando a falta que o percussionista faz: “Realmente ficou uma lacuna... ele fazia uma ponte entre a música brasileira e a música latina de uma maneira geral. Existe uma falta, desse grande personagem, grande músico Ramiro Musotto”.

    

E o contexto se completa com o depoimento do jornalista argentino Diego Oscar Ramos, que conheceu o trabalho do compatriota por acaso, no Brasil, sem saber que se tratava de um hermano: “Foi nessa mesmíssima Bahia que eu tive contato com a música de Ramiro Musotto, em finais dos anos 90, quando comprei em uma banca de revistas a fita cassete do disco ‘Liga Lá’, de Lulu Santos, em cuja banda ele tocava percussão e fazia programações de bateria eletrônica. Ali encontrei, mesmo sem saber que era sua, essa construção polissêmica fabulosa que é ‘La Danza del Tezcatlipoca Rojo’: poderosa tese sonora sobre a possibilidade de fazer dialogar distintas fontes culturais, e diferentes épocas, através de uma apropriação criativa tão respeitosa como cheia de suingue”.

Tempos depois Diego encontrou, em plena Argentina, o referido CD “Sudaka” (2003) e ligou os pontos das fichas técnicas de vários discos amados como “Livro” (1997), de Caetano Veloso, e “Marítimo” (1998), de Adriana Calcanhotto. “Pois até ali eu não sabia que aquela atualização ‘dance’ do berimbau no disco de Lulu era coisa de Ramiro. E foi esse detalhe que me fez inteirar de sua obra completa”, explica. Para ele, "o feito de um argentino destacar-se com força no ultra-exigente mercado brasileiro podia ser já um signo vibrante do absurdo de mantermos vivos os preconceitos competitivos que nos separam e nos impedem de perceber a beleza e o poder emancipador que pode haver em nossa irmandade".

Sudaka: “Essa palavra sempre me fascinou. Por ser uma palavra que não se usa aqui na América Latina, a gente não conhece, mas lá fora, na Europa, é muito forte. É o modo pejorativo de os europeus chamarem os sulamericanos. Eu gostei também porque é uma palavra pra chamar os sulamericanos, não os latinoamericanos. Quer dizer, os cubanos estão fora disso aí, os porto-riquenhos também. É só os argentinos, os brasileiros… que são os que mais tem na lá Europa, né? Então achei legal porque é uma palavra que une um pouco Argentina e Brasil, que é um pouco o que eu sou, assim, misturado”, explicou Ramiro ao lançar o álbum. Afrosudaka veio a se chamar sua banda e bloco de carnaval.

Músico, filho de músico e sobrinho de músico, Ícaro Sá tinha 19 anos quando Ramiro morreu.  E já tocava com ele desde os 15. “Grande parte da concepção das produções de hoje da música baiana moderna, tudo que envolve beats e ritmos, tem suas referências”, diz. Mas tem mais: se hoje em dia, via plataformas como YouTube e afins, música e imagem parecem cada vez mais imbricadas, Ramiro Musotto & Orchestra Sudaka já estavam nessa onda desde aqueles tempos de baixa resolução nas redes. E com um uso muitas vezes mais funcional e consciente do que se vê por aí. Vide “Antonio das Mortes” e “Caminho/Ginga” no DVD “Sudaka”, por exemplo.

Pois, no dia 11 de setembro de 2009, o artista morreu. “Quem espera sempre ao câncer”, escrevi, desolado, à época. E lembrei Maiakovski: "Se morrer, nesta vida, não é novo / Tampouco há novidade em estar vivo". A poesia, no entanto, é eterna. E se manifesta em eventos aparentemente banais como um instrumento de uma corda só. Em 31 de outubro daquele mesmo ano morreu também Neguinho do Samba. Por isso, hoje, nessa data, celebramos o Dia do Samba-Reggae. Quem mirou na homenagem ao mestre do Olodum acertou, porém, também no que não viu. 31 de outubro é aniversário de Ramiro Musotto: de Bahía Blanca à Bahia preta. Ambas com H. Poesia.