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Mais de 2 mil livrarias fecharam as portas em Salvador, mas resistência vem de redes regionais
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Mais de 2 mil livrarias fecharam as portas em Salvador, mas resistência vem de redes regionais
Livrarias independentes em Salvador resistem ao domínio da Amazon e à falta de políticas públicas para o setor

Foto: Divulgação/Mariana Andrade
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 25 de setembro de 2025
Num país onde quase metade da população não lê sequer um livro por ano, as livrarias físicas acabaram virando espécie em extinção. Na cidade das farmácias e clínicas estéticas, como é o caso de Salvador, a situação é ainda mais curiosa (para sermos, digamos, generosos). Os números da Sefaz (Secretaria Municipal da Fazenda) ajudam a contar essa história: entre aberturas e fechamentos nos últimos 15 anos, mais de duas mil livrarias encerraram suas atividades na capital baiana. Ainda assim, há quem resista.
É verdade que o saldo final mostra crescimento — de 242 estabelecimentos em 2010 para 1.750 em 2025 —, mas a matemática esconde uma realidade incômoda: o aumento não traduz vitalidade cultural, e sim pulverização em microempresas e negócios de pequeno porte, que muitas vezes mal resistem à concorrência do e-commerce e sobrevivem mais por teimosia do que por lucro. No mesmo período, bancas de jornal e sebos também encolheram. E de novo, entre eles, ainda assim, há quem resista.
O balcão que sobrevive às telas
A Livraria LDM, há 33 anos no mercado, é prova viva de que resistência não se faz sozinha. Mais do que ponto de venda, consolidou-se como lugar de afeto, onde autores e leitores se encontram. Foi nesse ambiente que o lançamento da autobiografia de Mário Kertész, Riso-Choro (e tudo mais que vem no meio), mostrou o poder dessa união: filas, exemplares esgotados e uma plateia entre risos e lágrimas.
A LDM aposta numa curadoria cuidadosa e em eventos culturais como forma de atrair leitores e criar comunidade. Contações de histórias, encontros com autores e clubes do livro viraram não apenas estratégia comercial, mas instrumentos de resistência. Há, no entanto, um desafio estrutural, aponta Luana Maldonado, coordenadora de eventos da LDM. “Apesar de ser um setor tão importante para a sociedade, vemos uma livraria fechar a cada três dias no Brasil, resultado da falta de uma política nacional que respeite e valorize toda a cadeia produtiva do livro”, critica. Ela reconhece o investimento de mais de R$ 20 milhões do Governo da Bahia em eventos literários, mas faz um alerta: sem livrarias, não há como consolidar um estado leitor.
O apagão cultural
Na capital baiana, o cenário vem ganhando contornos melancólicos. A Saraiva, outrora gigante, fechou as portas em 2020. No ano seguinte, foi a vez da Livraria Cultura encerrar atividades na cidade, apagando de vez a presença da rede no estado.
Os motivos para as livrarias terem entrado na lista de espécies em extinção são muitos e rendem bons livros e discussões acaloradas. Passam pela popularização dos e-books (e, em muitos casos, a pirataria deles), pela substituição de livros didáticos por módulos padronizados, pelo padrão de leitura do brasileiro e, em especial, pela concorrência de um predador agressivo: o e-commerce. O resultado, no entanto, não se resume a uma crise de mercado, mas a uma mudança cultural profunda: pequenas e grandes redes de livrarias sucumbiram à falência e, em seu lugar, sobraram algoritmos vendendo best-sellers e cadernos de pintura com frete grátis.
Quem aponta isso é o professor e historiador Henrique Tavares, que destaca a queda das livrarias como mais um sintoma da perda de espaços de sociabilidade na cidade. Mais do que lojas, Salvador deixa de lado a memória urbana, ressalta o professor. “No fim, a cidade fica mais silenciosa, e esse silêncio não é literário, é social”, afirma.
O Brasil que não lê
A internet engoliu o tempo livre. Oito em cada dez brasileiros preferem navegar online, enquanto apenas dois em cada dez ainda reservam esse tempo para os livros. A proporção era diferente há dez anos, mas agora as redes sociais já venceram de goleada. O resultado: pela primeira vez na história, o número de não leitores superou o de leitores.
O trator chamado Amazon
No meio dessa ressaca cultural, o mercado editorial também cambaleia. As livrarias físicas encolhem, as independentes sangram, enquanto a Amazon e seus pares avançam como tratores. A empresa de Jeff Bezos desembarcou no Brasil em 2014 vendendo papel e, em menos de uma década, dominou o mercado de livros. Como? Combinando uma logística quase militar com descontos agressivos — acusados por editores de configurarem dumping, aquela prática que consiste em vender abaixo do custo para matar a concorrência. Um clique e o pacote chega antes mesmo de você terminar de pensar.
Em 2019, a Amazon já concentrava metade das vendas online de livros e 80% dos e-books. Em 2021, as livrarias exclusivamente virtuais empataram com as tradicionais no faturamento das editoras e, quando falamos só de obras gerais, a internet já superou o balcão de madeira.
O empresário Paulo Escariz, dono da maior rede regional de livrarias do Nordeste, reforça o diagnóstico. “Antes da pandemia, as lojas online representavam 30% das vendas no mercado de livros físicos. Com a pandemia, esse número chegou a quase 80% e hoje voltou para 50%.” Para ele, só a experiência presencial pode manter vivo o hábito da leitura. “As telas chamam atenção pela dependência, mas a livraria física é o local para encontrar amigos, conversar e obter dicas de leitura”, defende.
Vendaval digital
E não é só a Amazon. Mercado Livre, Americanas (antes da crise), Magazine Luiza e Via também surfam nesse filão. Mas a campeã na corrida dos livros é mesmo a gigante americana. Enquanto as livrarias físicas trabalham em consignação com autores e editoras, a Amazon, além de servir como plataforma, compra lotes e vende como quem liquida estoque de eletrodomésticos. Para as editoras independentes, sobra o pedido de uma Lei do Preço Fixo, como existe em países da Europa e até na Argentina, que limitaria os descontos a 10% no primeiro ano de lançamento. Seria uma tentativa de nivelar o campo de batalha, mas, por aqui, ainda é só um sonho mal lido.
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