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Aqui jaz a PEC da Bandidagem: enterro de blindagem parlamentar prova a força das ruas

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Aqui jaz a PEC da Bandidagem: enterro de blindagem parlamentar prova a força das ruas

Mobilização nas ruas leva Senado a rejeitar proposta que garantia impunidade a parlamentares e lembra que a democracia depende da vigilância do povo

Aqui jaz a PEC da Bandidagem: enterro de blindagem parlamentar prova a força das ruas

Foto: Divulgação/Câmara dos Deputados*

Por: Juliana Lopes e Mariana Bamberg no dia 25 de setembro de 2025 às 09:53

Atualizado: no dia 25 de setembro de 2025 às 13:17

Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 25 de setembro de 2025

"A única coisa que mete medo em político é o povo na rua”. A frase de Ulysses Guimarães, o Senhor Constituinte, continua fazendo sentido e embalou as últimas semanas no Brasil. Prova disso foi o sepultamento, na última quarta-feira (24), da chamada PEC da Bandidagem, rejeitada por unanimidade na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ). Não foi um enterro fácil. Afinal, o texto que impedia a abertura de ações contra parlamentares sem autorização prévia deles mesmos foi aprovado com folga na Câmara dos Deputados, levando milhares de pessoas às ruas em protesto, inclusive em Salvador. O que se viu no Senado depois disso foi uma mudança de rota diante do medo da mobilização popular.

O tamanho do absurdo

A PEC da Bandidagem (ou Bandidagem, como ficou conhecida depois) beneficiava deputados e senadores em processos criminais. O STF só poderia abrir alguma ação contra os parlamentares mediante autorização prévia do Congresso. Na prática, um passe livre para cometer crimes sem que fossem julgados.

Eles sentiram a pressão

A rejeição da PEC entra em consonância com o que disse Otto Alencar (PSD-BA), presidente da CCJ, na sua passagem pela radinha, dias antes da votação no colegiado, reiterando o que já havia dito em outras ocasiões: “Uma matéria dessa não pode ser alterada para voltar para [a Câmara]. Tem que ser enterrada, sepultada com a votação dos senadores”, afirmou. Assim foi.

Partidos como União Brasil e PDT, que tinham orientado seus deputados a votarem a favor da PEC, viraram a casaca no Senado, sem constrangimento.

Constrangimento mesmo sentiram alguns deputados e quem os assistiu justificando, nas redes sociais, seus votos a favor da Bandidagem. Foi o caso de Mário Negromonte Jr (PP-BA), que chegou a dizer que sentiu como se tivesse sofrido um golpe ao perceber mudanças no texto. Silvye Alves (União-GO) recorreu ao famoso “quem me conhece sabe” e disse ter sido ameaçada por pessoas "influentes" do Congresso.

Merlong Solano (PT-PI) preferiu não mostrar as caras e se desculpou apenas com uma nota de retratação. Pedro Campos (PSB - PE), irmão do prefeito do Recife João Campos que é considerado como uma voz promissora do campo progressista, também votou a favor da PEC, mas alegou uma “tentativa de derrubar” o projeto de anistia aos envolvidos na trama golpista. Disse ainda que vai entrar com um mandado de segurança no STF pela anulação da votação.

Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

No Senado, o tom foi diferente. Mesmo aqueles que levaram propostas de emendas acompanharam o voto do relator no colegiado, o delegado Alessandro Vieira (MDB-SE), que foi firme em apontar a inconstitucionalidade da PEC e classificá-la como uma justificativa para o objetivo real que seria “garantir a impunidade de parlamentares e presidentes de partidos políticos”.

Isso porque o texto pretendia ainda ampliar o foro privilegiado a presidentes de partidos políticos – que podem, ou não, exercer mandato escolhido por voto popular. Nenhum país do mundo oferece esse tipo de proteção judicial. O Brasil, que já se destaca como um dos com maior número de siglas (são 29 agremiações em atividade), seria o único.

Retrocesso de 24 anos

Os defensores da PEC alegavam retomar o texto original da Constituição de 1988, quando a regra estava em vigor. Na época, éramos aquele Brasil recém saído de uma ditadura que cassou mandatos, suspendeu direitos políticos e fechou o Congresso Nacional quatro vezes. O momento histórico exigia esse tipo de garantia para impedir perseguições a parlamentares. Conforme a democracia foi amadurecendo, ficou nítido que esse dispositivo estava, na prática, garantindo impunidade e não justiça. 

Entre 1988 e 2001, mais de 250 pedidos de abertura de processo criminal foram apresentados pelo Supremo Tribunal Federal, mas apenas um deles foi aprovado pelo Congresso. Alguns parlamentares, inclusive acusados de crimes graves, foram beneficiados. 

O caso mais emblemático talvez seja o do ex-deputado Hildebrando Pascoal (antigo PFL-AC), o ‘deputado da motosserra’, hoje em prisão domiciliar. Enquanto cumpria seu mandato de 1995 a 1999, ele foi poupado em dois pedidos encaminhados pelo STF à Câmara. Acusado de comandar um grupo de extermínio e participar de organização criminosa no Acre, Pascoal só foi cassado após a realização da chamada CPI do Narcotráfico.

Por isso a regra mudou. Em 2001, a exigência de autorização prévia das duas Casas do Congresso Nacional para que o STF pudesse investigar e processar parlamentares suspeitos de cometer crime foi derrubada, inclusive com apoio do deputado baiano Cláudio Cajado (PP), relator favorável ao texto que traria de volta a blindagem. A PEC da Blindagem, fosse aprovada no Senado, representaria um retrocesso de 24 anos em nossa democracia.

Anistia é minha ‘xibata’!

A população respondeu em alto e bom tom à possibilidade do retrocesso. O domingo foi marcado por manifestações em todas as 27 capitais brasileiras. Os atos contra a PEC da Blindagem foram convocados sem muita antecedência nas redes sociais por políticos, artistas e movimentos sociais e surpreenderam pela rápida adesão popular.

Aqui em Salvador, o povo se reuniu em frente ao Morro do Cristo, na Barra. Nos cartazes, dizeres como ‘Congresso inimigo do povo!’, ‘Não à PEC da Bandidagem’, ‘Sem Anistia’ ou, em bom baianês, ‘Anistia é minha ‘xibata’!’, deram o tom. A população ainda aproveitou a ocasião para reivindicar outras pautas como o fim da escala 6x1 e a taxação dos super ricos. O ato marcou a volta da esquerda às ruas, antes tomadas pela direita em movimentos mais ou menos organizados, mas constantes.

Foto: reprodução/filipe roseira

Afasta de mim esse cale-se!

No Rio de Janeiro e em São Paulo, pesquisadores contabilizaram mais de 40 mil pessoas reunidas em cada uma das cidades. Na frente do Masp, no mesmo local em que no dia 7 de Setembro os patriotas estenderam a bandeira norte-americana pedindo por intervenção de Donald Trump, flâmulas brasileiras enormes foram abertas na esteira da retomada dos símbolos nacionais. Em Copacabana, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano e Djavan subiram ao trio vestindo, juntos, as quatro cores da bandeira do Brasil.

Aliás, o domingo nos ofereceu cenas que somente um ato cívico dessa magnitude proporciona. Uma delas foi Gil e Chico cantando juntos a música ‘Cálice’ – hino incontestável contra o autoritarismo. Eles, que sofreram com a censura, foram presos e exilados durante a ditadura militar, continuam, aos 83 e 81 anos, respectivamente, erguendo a voz contra a imoralidade herdada de tempos sombrios da nossa democracia.

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta

[...]

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado

Cálice (Chico Buarque e Gilberto Gil)

Alguns fatores levaram a pauta ao plenário da Câmara na semana passada

Primeiro, houve o motim da oposição, que ocupou as cadeiras da presidência do Senado e da Câmara, em protesto à prisão de Jair Bolsonaro. Deputados e senadores se revezaram e conseguiram impedir os trabalhos legislativos por alguns dias. Com direito a Zé Trovão (PL-SC) dirigindo ofensas e sentando na cadeira do presidente da Câmara. E a Julia Zanatta (PL-SC) usando a filha de colo como “escudo”.

Essa turma pedia por anistia geral e irrestrita aos condenados no julgamento da trama golpista e também pelo impeachment do ministro Alexandre de Moraes, relator da ação contra o ex-presidente.

Depois, o ministro Flávio Dino determinou a suspensão dos repasses das ‘emendas pix’ – aquelas que os parlamentares podem mandar direto para os cofres de estados e municípios sem sequer serem identificados. Dino também determinou que o TCU encaminhasse informações para que a PF possa investigar possíveis irregularidades. Auditoria da CGU já aponta irregularidades em 9 dos 10 municípios que mais receberam esses recursos.

Venda casada com a anistia

O sepultamento da Bandidagem não é o fim. Porque, logo depois da aprovação na Câmara, os deputados ainda conseguiram a urgência para o projeto da anistia, em uma espécie de venda casada articulada entre a direita e o centrão. É verdade que a derrubada da Bandidagem enfraquece o outro pleito, mas ele ainda está vivo. Mas a indignação e a mobilização popular também, como se viu nas ruas.

Crédito fotos de destaque: câmara dos deputados/zecaribeiro/ricardoaraujo/marinaramos/kaiomagalhaes/viniciusloures/renatoaraujo/brunospada/viniciusloures