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Trapiche Barnabé prova que patrimônio pode renascer sem incentivos públicos e sem virar adereço de luxo
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Trapiche Barnabé prova que patrimônio pode renascer sem incentivos públicos e sem virar adereço de luxo
No drama do patrimônio soteropolitano, requalificação do Trapiche Barnabé é exemplo de resistência à falta de política pública para preservação do acervo histórico de Salvador

Foto: Divulgação/Trapiche Barnabé
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 16 de outubro de 2025
Salvador até é a cidade que ostenta o maior acervo de imóveis tombados do país, mas parte significativa desse patrimônio segue fechada atrás de tapumes, ruindo aos poucos e agonizando sob o peso do combo ‘abandono e burocracia’. Isso não é mais novidade para ninguém. O espanto mesmo é quando iniciativas surgem como uma força motriz enfrentando as barreiras e a má vontade institucional para operar verdadeiros milagres: uma espécie de ressurreição urbana no território da inércia.
Quer um exemplo? São raros, mas o Trapiche Barnabé, na Cidade Baixa, é um deles. Antigo armazém portuário do século 18, de quando o mar avançava até onde hoje é a Avenida Jequitaia, o prédio recebeu mercadorias da rota Bahia-Portugal e foi resistindo como pôde às mudanças da cidade. Caiu no previsível abandono, como tantos outros, até ser recuperado por iniciativa do cineasta francês radicado na Bahia, Bernard Attal.
Sem padrinhos nem incentivos
Com investimento próprio, estimado em R$ 10 milhões e sem qualquer incentivo público, Attal reabriu o Trapiche em julho como um espaço cultural — artigo raro em Salvador. Foi lá, inclusive, que Wagner Moura marcou seu retorno aos palcos baianos, mostrando que, quando o patrimônio é tratado como bem comum, ele volta a pulsar.
Burocracia: o agente secreto da decadência
Quando Attal comprou o imóvel, há 20 anos, o encontrou como um esqueleto tomado por mato e estruturas desabando — cenário típico do centro de Salvador. O que ele não esperava era o pacote completo: além da degradação, enfrentou a paralisia ou má vontade institucional. As dificuldades foram de ausência de linhas de financiamento específicas a meses de espera para algo tão básico quanto o afastamento da fiação elétrica da rua pela Neoenergia Coelba. Attal defende que a sociedade também deve investir no patrimônio, mas precisa de incentivo para isso, “senão vamos perder todo esse acervo”.
Salvador tomba — literalmente
Enquanto o Trapiche renascia, o entorno seguia o script habitual da decadência. Só no último ano da obra, o Comércio virou manchete por desabamentos e riscos iminentes. O Instituto do Cacau, ainda em uso, mas cambaleando; o restaurante Cólon, que veio abaixo no ano passado; o prédio da antiga loja A Lâmpada, isolado com risco de desmoronamento. Todos a poucos quarteirões do Trapiche, compondo o retrato de uma capital que permite que sua memória apodreça à espera de uma política pública que nunca chega.
“Há muitos anos se fala da revitalização do Comércio, que ainda não se concretizou. Os órgãos públicos têm que se perguntar o porquê. A história da cidade nasceu lá”, resume Bernard Attal.
2,8 mil imóveis estão em situação de abandono em Salvador, segundo a Codesal. Destes, 19% têm risco alto ou muito alto de desabamento ou incêndio, especialmente no Centro Histórico.
Quando o bem público vira espaço VIP
A requalificação do Trapiche Barnabé é um raro caso em que a iniciativa privada, apesar dos obstáculos impostos pelo próprio Estado, consegue resgatar um bem histórico sem submetê-lo à lógica elitista. Um feito quase heroico diante de um cenário onde o mesmo Estado que dificulta iniciativas coletivas entrega outros patrimônios à iniciativa privada — desde que comprometidas com o consumo VIP.
O Iphan dormiu e os ricos nadam
Quando o restauro é usado como verniz para gentrificação, o patrimônio deixa de ser memória viva e vira adereço de luxo. É o que aconteceu com Elevador Lacerda, agora cenário de eventos seletos, e o casario da Misericórdia, com a construção de um rooftop irregular (à revelia do Iphan) e vista exclusiva para a elite. Será que o Centro Histórico é a nova versão dos camarotes da Barra, onde só “gente bonita” frequentava?
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