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Banhada em política, poesia e cachaça, Cantina da Lua celebra 80 anos com reforma que respeita memória e identidade popular
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Banhada em política, poesia e cachaça, Cantina da Lua celebra 80 anos com reforma que respeita memória e identidade popular
No coração do Pelourinho, Cantina da Lua inicia mais uma década de resistência com uma ampla reforma idealizada pela produtora Macaco Gordo, de Chico Kertész

Foto: Metropress/Marcelle Bittencourt
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 23 de outubro de 2025
Manter de pé um símbolo é, muitas vezes, mais difícil do que erguê-lo. A Cantina da Lua, no coração do Pelourinho, prova isso há 80 anos. Ali, cultura, política e memória se encontram — e, vez ou outra, se esbarram no balcão — em nome de um ideal simples: defender a cidade e seu povo.
Comandada por Clarindo Silva, a Cantina deixou de ser apenas um bar para virar um território de identidade, onde artistas, líderes populares e intelectuais discutiam justamente aquilo que o poder público fingia não ver. Uma espécie de gabinete popular regido também (por que não?) a cerveja e cachaça.
E não só gabinete popular. Ousamos dizer, sem medo de exagero, que a Cantina da Lua foi o único bar do mundo a sediar uma prefeitura, no segundo mandato de MK, em 1986. Agora, em 2025, a Cantina inicia mais uma década nessa história de resistência com uma ampla reforma idealizada pela produtora Macaco Gordo, de Chico Kertész.
Bastião cultural
Aquele casarão amarelo, onde está fixada a única placa que celebra o tombamento do Centro Histórico pela Unesco, remonta ao século XVII. Dali, foi vista a passagem dos heróis da batalha de Pirajá, após duros combates pela Independência da Bahia em 1823. Anos antes, o espaço ainda chegou a abrigar a primeira agência do Banco do Brasil (Casa do Banco, na época) do país.
Mas a Cantina é mais que cenário. É trincheira simbólica, uma espécie de “embaixada da Bahia” dentro do Pelourinho.
Tudo isso ganhou novo fôlego em 1971, quando Clarindo reinaugurou o espaço. A partir dali, o bar se tornou abrigo para as vozes que eram silenciadas: sambistas, poetas, militantes e gente disposta a defender o Centro Histórico quando o abandono já parecia destino. Foi nesse caldeirão que nasceram movimentos como o Revicentro, que lutou pela revitalização do bairro — e, claro, irritou muita gente poderosa.
E não à toa, a Cantina participou diretamente do tombamento do Centro Histórico como patrimônio nacional em 1984 e também como patrimônio mundial em 1985, pela Unesco.

Foto: Metropress/Marcelle Bittencourt
À base de muita temosia
Para o poeta e comunicador James Martins, a Cantina da Lua ocupa um lugar único na história de Salvador. Ele compara o bar aos blocos afro que, embora nasçam com o propósito de celebrar o Carnaval, acabam assumindo papéis sociais e políticos que o Estado e as instituições abandonaram.
“A Cantina é, essencialmente, um bar e restaurante”, diz James, “mas, por força das circunstâncias, passou a fazer o que o poder público não fazia”.
Mais que servir comida e bebida, a Cantina virou um centro cultural e político, de onde brotaram ideias, manifestações e alianças improváveis. Foi ali que Riachão, Batatinha, Panela, Claudete Macedo e tantos outros artistas encontraram abrigo em meio ao abandono do Pelourinho.
“Durante o processo de decadência do centro histórico, Clarindo foi o mais teimoso de todos”, resume James. E foi essa teimosia — misturada à fé e à malemolência — que manteve o casarão de pé quando tudo ao redor desabava.
Reforma com alma
O projeto de reforma, elaborado pelo Studio KAM — formado pelos arquitetos Brunna Menezes, Maicon Rios e Tarcísio de Assis —, reconhece o papel da Cantina. “Clarindo nos deu licença para começarmos a pensar os espaços seguindo algumas premissas que foram cuidadosamente delineadas por ele e por seu filho Mércio”, explicam os arquitetos. A proposta buscou melhorar o fluxo de funcionamento da cozinha e do bar, com intervenções estruturais discretas, como a instalação de uma cobertura retrátil, e adequações de acessibilidade.
Segundo o grupo, o projeto precisava ser silencioso, atento “às camadas de histórias e vivências do espaço, mais do que à imposição de experimentações estéticas”. Essa sensibilidade se tornou central em cada decisão, da revisão das instalações elétricas e hidrossanitárias à preservação de elementos originais, como a escada, as esquadrias e os gradis, que haviam sido parcialmente ocultados por reformas anteriores.
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Foto: Reprodução/Studio Kam
Toldo afetivo
Um dos momentos mais simbólicos do processo foi a discussão sobre o toldo retrátil, que não operava mais. A equipe chegou a propor uma cobertura translúcida com forro de renda, inspirada no artesanato baiano. Mas Clarindo Silva reagiu com afeto e memória:
“Esse foi o primeiro toldo retrátil da Bahia. Quando a gente abria ou fechava, as pessoas paravam para assistir”. A lembrança bastou para redefinir o projeto. “Percebemos o quanto o toldo era importante para ele e para a história do lugar, e então adotamos a recuperação dele no lugar da substituição”, diz a equipe.
O toldo foi mantido por ser parte da paisagem afetiva do Terreiro de Jesus e da memória popular. A área externa também recebeu novo mobiliário, palco, gradil e uma estrutura de jardineiras com vidro e espadas-de-São-Jorge, garantindo privacidade aos frequentadores sem romper o diálogo visual com a praça.
A reforma será feita em duas etapas. A primeira, com foco no pavimento térreo e na área externa. Deve ser concluída até o final de novembro, a tempo de uma reabertura parcial em homenagem ao Dia Nacional do Samba, em 2 de dezembro, data que reafirma o que resume bem: a Cantina da Lua é onde o povo faz o que o poder esquece.
O dia em que a prefeitura se mudou para o bar
Ao Jornal Metropole, Clarindo revisita as memórias que transformaram a Cantina da Lua em símbolo de resistência. Para ele, o bar foi o berço de “grandes lutas em defesa da nossa honra cultural, do nosso centro histórico e dos nossos antepassados”. E completa, com a sabedoria de quem viveu cada batalha: “A união faz a força. Ninguém constrói nada sozinho.”
Clarindo recorda um dos episódios mais emblemáticos de sua trajetória, em 1986: quando Mário Kertész, em seu primeiro dia à frente da gestão municipal como prefeito eleito, reuniu o secretariado no primeiro andar da Cantina, transformando o bar em sede simbólica do poder municipal. Na época, a sede da prefeitura havia sido transferida para o Solar Boa Vista de Brotas, pelo então governador Antonio Carlos Magalhães que distanciou a administração municipal do coração da cidade para, segundo suas palavras, afastar “ prefeito com vontade de ser governador”.
Como prometido em campanha, MK realizou a primeira reunião na Cantina da Lua, simbolizando a volta da prefeitura para o Centro Histórico, enquanto o Palácio Thomé de Souza era construído, com projeto do arquiteto Lelé. Clarindo tratou logo de ambientar o local e colar na parede, como em todo gabinete, a foto do presidente da época. Entre 1986 e 1987, a Cantina da Lua consolidou-se como extensão viva da gestão de Mário Kertész, sediando reuniões, encontros e debates de dirigentes municipais e da Fundação Gregório de Mattos. Era o poder público dialogando com o povo no mesmo espaço onde sempre se defendeu aquilo que a cidade teima em esquecer: sua própria alma.
Foto: Acervo
Cartas, causas e um Papa no meio do caminho
Um ano antes, em 1985, a Cantina viveu outro episódio digno de roteiro. A convite de Carlos Moura, assessor do Ministério da Cultura, Clarindo entregou ao ministro Aluísio Pimenta o Manifesto à Nação, denunciando o abandono do Centro Histórico. O documento chegou ao presidente José Sarney e ecoou para além das ladeiras do Pelô, expondo o contraste entre a retórica oficial de “preservação” e o descaso cotidiano.
Mas Clarindo foi além: levou suas denúncias até o Papa João Paulo II, em plena Catedral Basílica. Na carta, alertava para o racismo, a esterilização de mulheres negras, a mortalidade infantil e o abandono de patrimônios como a Igreja da Barroquinha. O Papa prometeu incluir as causas em suas orações; Clarindo, por sua vez, transformou o gesto em símbolo de fé e luta. Ao seu lado, estavam Vovô do Ilê e Petú do Olodum, representando um povo que aprendeu a fazer política com tambor, sorriso e resistência.
Reabertura à vista
A inauguração dessa nova fase e da Cantina deve acontecer com uma grande festa, reunindo artistas e amigos do espaço. E, para viabilizar essa obra, a campanha de reforma, encabeçada por Chico e Mário Kertész, convoca empresários a se unirem à causa. Os doadores terão seus nomes ou de suas empresas eternizados em uma placa na Cantina.
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