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De promessa médica a produto do crime organizado, as canetas emagrecedoras viram problema de Segurança Pública
Canetas emagrecedoras viram alvo de quadrilhas, falsificadores e alerta médico em meio à explosão de uso

Foto: Agência Enquadrar/Folhapress
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 11 de dezembro de 2025
Se o Brasil já foi o país do futebol, do carnaval e da gambiarra, agora pode acrescentar ao currículo um novo ícone nacional: a caneta emagrecedora. A explosão desses medicamentos no país, impulsionada pela popularização do Mounjaro, Ozempic e outros, criou um mercado paralelo que se espalha por aeroportos, laboratórios clandestinos, redes sociais, comunidades e condomínios de luxo. O que deveria ser um avanço no tratamento da obesidade transformou-se em um cenário que envolve roubo em farmácias, contrabando, fraude, golpes digitais e operações policiais de grande porte.
Rota do emagrecimento
No Aeroporto de Salvador, a Receita Federal tem atuado quase diariamente para conter o que já é considerado uma rota consolidada de contrabando. Em um dos casos mais recentes, agentes encontraram 222 etiquetas de Mounjaro colados no corpo de um passageiro, material que seria utilizado para fabricação irregular de medicamentos manipulados.
Outros episódios reforçam a escalada do problema: uma passageira de 31 anos foi flagrada com 90 canetas emagrecedoras amarradas ao corpo, vindas da Europa. Um homem de 29 anos, vindo de Lisboa, transportava 60 canetas do medicamento Mounjaro.
Somente neste ano, a Receita já apreendeu 385 canetas na Bahia, além de 681 caixas vazias, usadas para dar aparência de legalidade a produtos clandestinos.
Da clínica à Polícia Federal
A atuação irregular não se limita ao contrabando. Segundo a Polícia Federal, as investigações também alcançaram a esfera médica. O baiano Gabriel Almeida, que reúne milhares de seguidores nas redes sociais, tornou-se um dos principais alvos de uma operação que apura a suspeita de fabricação e comercialização clandestina de medicamentos para emagrecimento, incluindo versões irregulares de Mounjaro (tirzepatida).
De acordo com a PF, o grupo investigado manipulava substâncias sem autorização sanitária, sem pagamento de patente e em condições consideradas inadequadas pelas autoridades. Os investigadores afirmam que a produção teria características próximas de uma operação em escala industrial, com distribuição pela internet, por meio de redes sociais e atendimentos comerciais que incluíam entrega por delivery e oferta conjunta de serviços estéticos.
Entre os materiais apreendidos durante a operação, estão carros de luxo, relógios de alto valor e um avião. As diligências também atingiram uma propriedade localizada na Baía de Todos os Santos, a Ilha de Carapituba. Um comércio irregular que tem tirado a saúde de muitos, mas rendido lucro a outros.
Ainda segundo a PF, a tal ilha investigada teria sido utilizado para treinamentos e encontros com profissionais de saúde voltados à apresentação de protocolos de emagrecimento que incluíam substâncias sob apuração. Essas informações fazem parte do inquérito e ainda dependem de confirmação judicial.
A defesa do médico baiano afirma que ele refuta veementemente todas as acusações. Em nota, sustenta que Gabriel Almeida não fabrica medicamentos, não opera qualquer tipo de laboratório clandestino e que todas as compras de insumos são formalizadas com nota fiscal e documentação regular. A defesa informou ainda que apresentará à Justiça todos os registros necessários para comprovar a legalidade das atividades exercidas pelo profissional.
Receita falsa em um clique
O ambiente digital também se tornou fértil para fraudes. Duas médicas denunciaram à polícia o uso indevido de seus nomes em anúncios falsos de canetas emagrecedoras. Páginas clandestinas utilizam: nomes de especialistas, marcas de laboratórios, selos forjados de segurança e até a identidade visual da Anvisa, que precisou emitir alerta público negando qualquer participação na venda de medicamentos.
O Jornal Metropole também apurou que, na rede social TikTok, pessoas que se apresentam como médicos anunciam atendimentos online para receitar canetas emagrecedoras. Números de WhatsApp também ofertam o medicamento sem qualquer prescrição. Em alguns casos, há até uma tabela “sofisticada” para que o consumidor escolha o produto de sua preferência. A venda é apresentada como “projeto verão” e a compra é simples: o cliente seleciona, paga e recebe por delivery.
Mas não para por aí. A venda é feita também fracionada, “por picadinha”. Uma mesma caneta para mais de um cliente (aqui passa longe de ser um paciente). E o modelo de venda é adotado desde pontos de vendas em bairros periféricos até consultórios em regiões nobres.
Farmácias na mira do crime
Na Região Metropolitana de Salvador, farmácias passaram a ser alvo de roubos motivados exclusivamente pelo alto valor das canetas. Há relatos de mães com filhas diabéticas que precisam montar uma “força tarefa" para comprar o medicamento, originalmente foi criado para tratar essa doença.
Em um intervalo de 24h, estabelecimentos no Corredor da Vitória, Costa Azul, Horto Florestal e Lauro de Freitas foram invadidos. A Polícia Civil identificou mais de dez integrantes de uma quadrilha especializada e deflagrou a Operação Apotheke, com mais de 200 mobilizados. O grupo criminosos agia de forma reiterada e buscava especificamente canetas emagrecedoras.

Mercado fora do controle
O avanço desse tipo de medicamento trouxe inovação ao tratamento da obesidade, mas também abriu uma brecha explorada por criminosos, falsificadores e intermediários ilegais. A demanda elevada, preços altos e dificuldade de acesso criaram um terreno fértil para irregularidades que desafiam tanto a vigilância sanitária quanto as forças de segurança.
Entre contrabando, manipulações clandestinas, golpes e roubos, o mercado das canetas emagrecedoras cresce em velocidade muito superior à capacidade de fiscalização, colocando a saúde pública, mais uma vez, em segundo plano diante de uma disputa que envolve dinheiro, vaidade, risco e ilegalidade.
O hepatologista Raymundo Paraná atribui a busca por canetas emagrecedoras manipuladas e sem prescrição ao impacto das redes sociais e à banalização do risco. Segundo ele, “a humanidade está em crise de princípios” e muitos recorrem aos medicamentos para atender estereótipos estéticos. Para o médico, “o que interessa é o resultado imediato”, e isso leva ao uso inconsequente e sem acompanhante.
Paraná alerta que, embora essas medicações sejam seguras quando usadas corretamente, idosos podem apresentar efeitos graves, como “parada do intestino e perfuração intestinal”. Já nas versões manipuladas, ele afirma que não há qualquer garantia de segurança, já que essas formulações não passam por testes clínicos nem por controles de qualidade exigidos para medicamentos registrados. “Uma farmácia de manipulação faz uma ou outra manipulação em doses individualizadas, mas não produção em massa”.
O médico também demonstrou preocupação com o contrabando e o transporte inadequado das canetas. Ele classificou como “indecência total” o uso de mulas com o produto colado ao corpo, já que a falta de refrigeração compromete a substância. Paraná reforça ainda que aplicações em consultórios sem estrutura adequada configuram risco sanitário e ilegalidade, e vê o aumento de roubos como reflexo da desinformação que alimenta o mercado clandestino. Para ele, “as redes sociais têm criado situações extremamente preocupantes”.
Manipulados surfando na onda
Preocupadas com a proliferação das versões manipuladas, cinco das principais entidades de saúde do país enviaram carta à Anvisa pedindo a suspensão cautelar da fabricação, comercialização e prescrição de medicamentos manipulados com tirzepatida, semaglutida e retatrutida. No documento, elas afirmam enxergar “risco sanitário iminente”, destacando falta de controle de qualidade, produção irregular e venda clandestina com potencial para causar dano grave à saúde.
A Rádio Metropole ouviu os médicos Fábio Moura, diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), e Marcelo Steiner, diretor da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Eles explicaram que a Anvisa possui uma norma que regula as farmácias de manipulação. Essa regulamentação permite manipular determinados princípios ativos, mas estabelece uma ressalva: as farmácias não podem produzir em larga escala. “No momento em que há produção massiva, a lei é violada”, afirmou Moura, destacando que esse tipo de fabricação exige controles sanitários rigorosos. “Quando se faz em larga escala sem rigor, você pode ter problemas de dose, contaminação e toxicidade”, disse.
Os especialistas defenderam a suspensão cautelar solicitada pelas entidades, medida que interrompe temporariamente a produção até que haja clareza regulatória. Moura reforçou que a Anvisa avalia o caso e não há posição definitiva. Para ele, o objetivo não é desqualificar o setor, mas garantir segurança. “O que não pode acontecer é a atuação mercantilista sem compromisso com a saúde”, afirmou.

Rafa Naddermeyer/Agência Brasil
O que diz a Anvisa
Em nota ao JM, a Anvisa informou que tem adotado diversas medidas para coibir desvios de uso e comercialização ilegal: além de informação e orientação à população, inclusive por meio da Imprensa, a Agência determinou retenção de receita para a venda desses medicamentos no Brasil e estabeleceu mecanismos específicos e restritivos para a manipulação dessas substâncias.
“A Agência também tem atuado na fiscalização de anúncios e sites na internet e recentemente restringiu o ingresso no país de algumas marcas e apresentações de canetas emagrecedoras após evidências de comercialização irregular, inclusive na internet e em redes sociais, ambientes nos quais é proibida a venda de medicamentos”, diz a nota.
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