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Da Saúde ao Nordeste de Amaralina, bairros sustentam a cultura, o lazer e a vida soteropolitana

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Da Saúde ao Nordeste de Amaralina, bairros sustentam a cultura, o lazer e a vida soteropolitana

Entre praças, bares e ruas ocupadas, moradores constroem lazer, cultura e pertencimento onde vivem

Da Saúde ao Nordeste de Amaralina, bairros sustentam a cultura, o lazer e a vida soteropolitana

Foto: Metropress

Por: Daniela Gonzalez no dia 26 de dezembro de 2025 às 07:39

Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 26 de dezembro de 2025

A imagem mais divulgada de Salvador deixa muita coisa de fora. Geralmente associada a poucos bairros e a um recorte turístico específico, a cidade costuma ser apresentada a partir de cenários instagramáveis e já conhecidos. Fora desse eixo “Barra-Ondina”, no entanto, Salvador acontece todos os dias nos bairros, sustentada por quem vive, trabalha e se diverte nos próprios territórios, onde cultura, lazer e convivência fazem parte da rotina — e não dependem de vitrine.

Fora do eixo, dentro da cidade

Ela está no Garcia, onde as ruas viram ponto de encontro, o bar da esquina funciona como extensão da sala de casa, as praças se transformam em quintal e a conversa atravessa gerações. O corretor de imóveis Antônio Macedo não tem dificuldade para definir o bairro: é familiar. “Aqui você vê a praça cheia de crianças, as pessoas passeando com os cachorros”, diz, em um relato que revela vida e lazer fora dos cartões-postais.

E não só isso. O Garcia também é tradição, memória e cultura. “É um bairro tradicional de Salvador, da velha guarda do samba, que realmente representa a cidade com suas manifestações populares”, afirma Antônio. É ali que acontecem a Mudança do Garcia, os feijões tradicionais e a rabada de segunda-feira no Bar do Dedéu. “Então é um bairro também gastronômico e culturalmente conhecido por outras atividades”, resume.

No final de linha, faça chuva ou faça sol, moradores se reúnem em torno da praça. Levam instrumentos musicais ou caixas de som e fazem seu samba perto de casa; crianças descem com bola de futebol e passam o dia correndo; comerciantes, moradores do próprio bairro, se espalham pelo entorno com pastel, cachorro-quente, churrasquinho e o que mais tiver demanda. O lazer é o bairro.

Cidade mal contada

Mas essa Salvador quase nunca é lembrada quando se fala da cidade. A atendente Adriane Carvalho observa que o olhar costuma ser seletivo. “Muita gente vê Salvador só como Rio Vermelho, Barra, Ondina, e esquece de outros bairros”, aponta. No próprio Garcia, segundo ela, a vida cultural segue ativa. “Aqui sempre acontece samba. E os comerciantes estão se juntando para resgatar essa visão do bairro, mostrar que sim, o Garcia dá para vir, pessoas de outros bairros podem curtir, ter seu momento de lazer e voltar para casa tranquila”.

Vida acontece aqui

Essa dinâmica não é exclusiva do Garcia. Ela se repete em outros territórios da cidade. Nos bairros tradicionais e periféricos, Salvador acontece. Há bares cheios, centros culturais improvisados ou consolidados, festas que não precisam de grande produção para existir. Há música alta, risadas, encontros marcados sem convite formal. Há lazer possível, mesmo quando tudo parece difícil.

No Subúrbio Ferroviário, o Acervo da Laje é um exemplo de como a cultura se constrói a partir do território. Instalado em uma casa simples, o espaço reúne obras de arte, memória e produção contemporânea, abrindo as portas para visitas, encontros e atividades formativas. Mais do que um acervo, o projeto transforma a laje, lugar cotidiano e doméstico, em ponto de circulação cultural, mostrando que a arte não precisa do centro nem de grandes estruturas para existir, apenas de vínculo com quem vive ali.

Foto: Secom/Lucas Moura

Pertencer basta

“Salvador, para mim, é isso aqui: o bairro onde nasci, cresci, casei, onde tenho meus amigos, onde posso aproveitar, tomar minha cervejinha e não me preocupar com a hora de voltar para casa.”

O bairro é o Nordeste de Amaralina, e o dono da declaração apaixonada é o aposentado Arlindo Silva. Ele tem certeza de que Salvador está ali, mesmo que, para parte da imprensa, das classes abastadas e de alguns governantes, a localidade produza apenas números de violência. Arlindo contesta esse discurso com um sentimento: “eu não preciso ir para outros lugares para ser feliz”.

O mecânico Marcelo da Silva compartilha do mesmo vínculo com o território. “Muitas pessoas esquecem o bairro onde nasceram. Eu nasci aqui. Todas as sextas e sábados estou no mesmo lugar, aproveitando meu bairro”, conta, lembrando que a festa também mora ali.

No Carnaval, essa lógica se amplia, com o circuito Mestre Bimba confirmando que Salvador não se resume à Barra-Ondina. Aos fins de semana, são os paredões que dão o tom e, apesar das controvérsias, seguem atraindo jovens de diferentes bairros, que se arrumam, se encontram e ocupam o espaço como forma de pertencimento. É som alto e incômodo para muita gente? Sim. Mas é também um código cultural compartilhado — uma maneira de celebrar, circular e existir na cidade.

Um brinde à resistência

Essas formas de ocupar as ruas nem sempre são fluidas. Muitas vezes, exigem resistência. O bairro da Saúde é um exemplo. Morador e produtor de eventos, Júnior Bitencourt lembra de um período em que, segundo ele, o bairro passou por um longo processo de apagamento. “Foram muitos anos, mas nós, moradores, resistimos. Hoje, todo fim de semana, pessoas lotam aqui. Isso é muito bom para o bairro, esse reconhecimento. Eu amo viver cada momento nesse lugar e dizer que pertenço a ele.”

O que Júnior aponta é que a noite na Saúde tem ritmo e volume próprios. Mesas avançam pelas calçadas, caixas de som, palcos e, às vezes, até trios disputam espaço com conversas altas e o vai e vem de gente, transformando o bairro em ponto de encontro e de cultura. Nem sempre é pacífico: há embates entre moradores que pedem silêncio e comerciantes que dependem do movimento para sobreviver. A disputa pelo espaço revela incômodos reais, mas também expõe algo que, por muito tempo, parecia perdido e que os cartões-postais não mostram: a vida pulsando nas ruas. Entre conflitos, negociações e excessos, a Saúde reafirma a energia dos bairros de Salvador, que são vividos, não apenas atravessados.

Foto: metropress

Cultura gera renda

Na Saúde e em outros bairros, as festas também movimentam a economia local. Bares ampliam o funcionamento, ambulantes garantem renda extra e pequenos comércios sentem o aumento no fluxo de pessoas. O dinheiro circula dentro do próprio território, fortalecendo quem vive e trabalha ali e mostrando que cultura também é atividade econômica — não apenas no “grosso” das campanhas publicitárias, mas no miúdo, no sustento de cada família.

Mesmo com público, organização e impacto social, essas manifestações culturais raramente ganham espaço no noticiário por sua relevância cultural ou econômica. Quando os bairros aparecem, muitas vezes é a partir de recortes negativos: violência, barulho, conflitos. Isso contribui para um apagamento simbólico de iniciativas que mantêm a cidade em movimento.

Grande parte dessas festas acontece sem apoio institucional permanente. A programação é construída por moradores, produtores independentes e comerciantes locais, que organizam eventos, cuidam da estrutura possível e garantem a continuidade das manifestações. Não é improviso nem romantização da ausência, mas organização comunitária.

Rua como direito
Nos carnavais de bairro, a rua assume outro papel. Deixa de ser apenas passagem e se transforma em espaço de encontro, memória e celebração. São circuitos alternativos preservados pela repetição e pela vivência coletiva, que mantêm vivas histórias e identidades fora dos mapas oficiais da festa.