
Política
Casas Conceito 2025: uma mostra fora da lei
Reforma de prédios históricos para evento concebido pela empresária Andrea Velame e construção de restaurante de luxo em rooftop foram realizadas sem autorização do Iphan

Foto: Metropress/Danilo Puridade
Pouca gente sabe, e quem sabe de verdade se omite, mas a mostra Casas Conceito 2025 esconde uma ilegalidade em pleno coração do Centro Histórico de Salvador, área de quase 500 anos protegida pelas normas federais de preservação. A reforma dos três prédios seculares tombados na Praça Municipal que vão abrigar a exposição, voltada o mercado de decoração e arquitetura, e a construção de um restaurante de luxo no rooftop do imóvel ao lado, o mesmo onde funciona uma agência do Bradesco, não foram autorizadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
As obras contrariam frontalmente dois dispositivos que regem processos de intervenção em imóveis e conjuntos arquitetônicos alvos de tombamento federal: o Decreto-Lei número 25, de 30 de novembro de 1937, e a Portaria do Iphan número 420, de 22 de dezembro de 2010. Ambos proíbem de modo expresso quaisquer tipos de obras em bens protegidos sem aval prévio do órgão. Segundo apurou o Metro1, os imóveis históricos, que integram o chamado Portal da Misericórdia ou Casario da Misericórdia, pertencem à Santa Casa de Salvador, assim como os dois andares acima da agência do Bradesco.
Há cerca de um ano, a entidade filantrópica alugou todos os imóveis para a design de interiores, ex-apresentadora de TV e empresária Andrea Velame, criadora das Casas Conceito. Após o fim da mostra, que começa na terça-feira (09) e termina em 9 de novembro, a ideia é transformar o casario em um hotel butique, o Villa Andrea, com 29 suítes, uma delas presidencial, e espaço integrado aos 500 metros quadrados de cobertura que darão espaço ao restaurante Ori Rooftop, pilotado pelo casal de chefs Fabricio Lemos e Lisiane Arouca, do Grupo Origem.
Até aí, tudo bem, se não fosse a inexistência de autorização do Iphan. No caso do rooftop erguido em cima do Bradesco da Praça Municipal, a ilegalidade é ainda mais grave, pois gerou dano permanente. Isso porque houve alteração de parte da fachada lateral do prédio, mesmo que discreta, além da construção do rooftop de luxo, com piscina e vista para a Baía de Todos os Santos, igualmente irregular por falta de aval do Iphan. Parte dele, para piorar, ocupa o terraço de um casarão tombado. Em relação aos outros dois prédios antigos, as intervenções não alteraram as feições externas dos imóveis, mas também deveriam ser precedidas de autorização do instituto.
Ilegalidade foi cometida em frente à sede da prefeitura e a poucos metros do escritório do Iphan em Salvador (Fotos de Danilo Puridade/Metropress
Iphan deveria ter embargado as obras, mas lavou as mãos
Pelas regras que regem o patrimônio histórico e artístico, o Iphan teria que embargar as obras devido à ausência de aval prévio do órgão. Contudo, fontes do instituto informaram ao portal que a área técnica responsável pela fiscalização de imóveis e conjuntos tombados não realizou o embargo, como determina a legislação. As informações que circulam nos corredores do instituto apontam para uma suposta interferência política voltada a agilizar o projeto, ainda que ao arrepio da lei.
O apoio político talvez explique o silêncio do departamento de Comunicação Social do Iphan em Brasília. Contactada desde a segunda-feira passada (01) pela reportagem sobre a existência ou não de autorização para as obras, a assessoria de imprensa do órgão não respondeu aos questionamentos até o fechamento desta edição. Nos sucessivos contatos, a resposta foi sempre a mesma. Algo como: "A demanda está com a área técnica, seguimos apurando e retornaremos assim que tivermos a informação". Uma semana depois, nenhum pio a mais do instituto. O Metro1 também procurou o atual superintendente do Iphan na Bahia, Hermano Guanaes, mas não foi atendida.
Projeto também não teve alvará da Sedur
Quando se pensa que acabaram os precedentes para o absurdo, surge outro. O projeto capitaneado por Andrea Velame também não obteve alvará da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur) para a realização de reforma e construção nos prédios que farão parte da mostra e serão incorporados pelo novo hotel de luxo, incluindo o rooftop. Isso porque a Sedur só emite esse tipo licença para bens protegidos pelas leis do patrimônio nacional ou em imóveis situados em conjuntos arquitetônicos tombados pelo Iphan após autorização do instituto. Mesmo assim, as obras realizadas a poucos metros do gabinete do prefeito Bruno Reis (União Brasil) e da sede do Iphan seguem de forma ilegal.
Operários fazem últimos ajustes em imóveis da mostra; ausências de placas na fachada confirmam falta de alvarás da Sedur
A autorização prévia para intervenções do tipo está prevista em dois dispositivos do Decreto-Lei de 1937, assinado pelo então presidente Getúlio Vargas e o então ministro da Educação e Cultura à época, Gustavo Capanema. "As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou restauradas", diz o artigo 17 do decreto. Já o 18 estende o veto para bens situados no entorno de áreas sob tombamento federal. A portaria do Iphan de 2010, por sua vez, reforça tais proibições e o dever do instituto de embargar obras em desacordo com a legislação. O que não foi feito.
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