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“Tive a sorte de ser filho de Marighella e não pude desfrutar dele”, diz filho do guerrilheiro morto durante a Ditadura Militar

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“Tive a sorte de ser filho de Marighella e não pude desfrutar dele”, diz filho do guerrilheiro morto durante a Ditadura Militar

Filho de Carlos Marighella, guerrilheiro considerado o “inimigo número 1 do regime militar”, abre a série de reportagens especial do Metro1 sobre a ditadura, contando detalhes da vida com o pai e da perseguição sofrida por ele

“Tive a sorte de ser filho de Marighella e não pude desfrutar dele”, diz filho do guerrilheiro morto durante a Ditadura Militar

Foto: Acervo pessoal/reprodução

Por: Laisa Gama no dia 25 de março de 2024 às 15:25

Atualizado: no dia 01 de abril de 2024 às 18:02

Uma das últimas vezes que Carlinhos viu seu pai vivo foi em 1964, logo após a Ditadura Militar ser instaurada no Brasil. Vestido feito um playboy, de calça jeans - coisa que era difícil para a época - e usando peruca, o menino de então 14 anos, quase não reconheceu o pai que sempre se vestia de terno e gravata. O “temível”, o “criminoso subversivo” e “inimigo número 1 do regime militar”, em meio à toda perseguição dos militares e às responsabilidades com o Partido Comunista, havia tomado a decisão de encontrar o filho para saber como ele estava indo na escola. 

É assim que Carlinhos relembra, saudosista, da figura de Carlos Marighella, um dos grandes combatentes da luta armada contra a tortura e crimes cometidos no país após o golpe militar, há exatos 60 anos. Sua vida pessoal é imensamente conectada à figura paterna. Por conta do pai, foi expulso de escolas, perdeu um emprego na Petrobrás, teve amizades desfeitas, criou inimigos e viu seus próprios filhos sofrerem com isso. Ainda assim, o sentimento é de admiração. “Fui criado para ter orgulho do nome que tenho”, afirma.

Quando Carlinhos nasceu, Marighella ocupava o cargo de deputado constituinte pelo Partido Comunista. Mas, naquele ano, 1948, em um Brasil governado por Eurico Gaspar Dutra, a sigla foi cassada e o deputado teve que sumir. Só em 1955, quando Juscelino Kubitschek chega ao poder, que Carlinhos, aos sete anos, vê o pai pela primeira vez. “Me identifiquei logo, ele é muito parecido comigo. Ele me abraçou, pegou no colo e, para mim, parecia que nós [já] nos víamos há muitos anos”, relembra.

Após sua mãe se casar, ele que até então morava na Bahia foi para o Rio de Janeiro aos dez anos de idade e começou a participar da rotina do seu pai, um homem que ele chama de careta. “Não bebia, não fumava, o negócio dele era o comunismo. Era um executivo político pronto para conversar com um ministro a qualquer hora”, lembra aos risos. Carlinhos conviveu com o pai até os quinze anos, quando o golpe militar os separou novamente.

Foto:Reprodução/Aperj

“No dia do golpe, saí da escola no Rio de Janeiro e, quando chego no nosso apartamento, a polícia já estava lá. Tive que me afastar. Meu pai sumiu de verdade ali na minha frente. Fiquei na escola esperando notícias dele”, rememora. Como no episódio em que encontrou em que disfarçado encontrou seu filho para saber como estava indo no colégio, Carlos Marighella visitou Carlinhos ainda muitas vezes, antes do jovem ser obrigado a voltar para a Bahia. Em maio de 1964, em um cinema carioca, o pai sofreu uma tentativa de assassinato e o menino de 15 anos foi embora para ficar em segurança.

Foi o último ano em que viu seu pai. Ao longo dos cinco anos seguintes, conversou com ele por telefone ou teve notícias através do Partido Comunista, ao qual também se filiou. Até que, na noite do dia 4 de novembro de 1969, um jornalista da Tribuna da Bahia, em Salvador, o levou à redação para confirmar a notícia que acabara de chegar: Marighella havia sido morto.

Era muito comum sair notícias da morte do pai, então, com o tempo, Carlinhos se acostumou. Mas a verdade é que passou 30 minutos em extrema agonia enquanto esperava uma foto do seu pai morto e baleado se revelando ponto a ponto. “Ia vendo que cada pontinho daqueles era a confirmação de uma coisa que eu me neguei a acreditar durante muito tempo. Eu achava que ia dar tudo certo. Que eu ia rever meu pai, que ele, com toda alegria extasiante, ia aparecer na minha frente como apareceu no primeiro dia, me colocar em seu colo e que tudo ia ser como era antes”. 

Naquela noite, em uma ação coordenada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) mataram Marighella, aos 57 anos, na Alameda Casa Branca, em São Paulo.

Busca por reconhecimento 

Depois que seu pai foi morto, Carlinhos se engajou em uma luta para que todos conhecessem quem foi Marighella. Entre os anos de 1975 e 1977, foi preso em Salvador em uma operação comandada pelo coronel Carlos Alberto Ustra. “Eu era muito jovem, mas já era militante, já participava de movimentos estudantis e manifestações. Não fui preso só por ser um militante político, mas pelo ódio a Marighella”, explica.

Carlinhos conta ainda sua luta para criar, na Bahia, um memorial em homenagem a seu pai e a vítimas da Ditadura Militar. Segundo ele, nunca conseguiram sensibilizar as autoridades para que de fato fosse criado. Carregando com orgulho o sobrenome Marighella, ele pensa em fazer uma convocação entre seus filhos para se mobilizar em prol da criação deste lugar. “A gente precisa fazer com que essa memória prospere. É um dever da Justiça falar de gente que morreu como Marighella. Baianos e baianas morreram na Ditadura e a gente precisa conhecer eles”.

Esta matéria faz parte da série História de Resistência, lançada pelo Metro1 nesta semana, quando o golpe militar brasileiro completa  60 anos. Com  seis reportagens, a produção retrata histórias de baianos que foram perseguidos ou tiveram suas vidas modificadas pela ditadura. Além de Carlinhos, nomes como Emiliano José, Joviniano Neto, José Carlos Souza, Olival Freire e Diva Santana também farão parte.

Hoje com 75 anos, Carlinhos nunca deixou de sentir saudades do pai. Foram poucos anos de convívio até que teve sua figura paterna arrancada de si, mesmo assim conta com muito cuidado diversas histórias ao longo dos poucos anos que passou ao lado do guerrilheiro. “Eu tive a sorte de ser filho de Marighella e não pude desfrutar dele. Eu gastei e gasto muito tempo da minha vida para revelar para as pessoas a figura bondosa, genial que era Carlos Marighella. Ele é um homem muito digno”, declara.