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A solidão tem cor e gênero: cientistas sociais explicam o racismo no relacionamento amoroso

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A solidão tem cor e gênero: cientistas sociais explicam o racismo no relacionamento amoroso

Para especialistas, consequências vão além do campo de relações heteronormativas

A solidão tem cor e gênero: cientistas sociais explicam o racismo no relacionamento amoroso

Foto: Reprodução/Jornal da Metropole

Por: Tailane Muniz no dia 03 de fevereiro de 2022 às 13:00

Reportagem originalmente publicada no Jornal da Metropole, em 3 de fevereiro de 2022

Rosa de Almeida Santos é mãe solo e, em toda a sua existência, teve apenas um relacionamento. Aos 48 anos, a diarista não nega costume à vida a dois. Na casa de dois cômodos, no Curuzu, só tem espaço para ela e o filho único, um adolescente de 17. “A essa altura, nem faz sentido”, diz a mulher — negra, nascida e criada nas imediações da Senzala do Barro Preto, sede do Ilê Aiyê — quanto à possibilidade de uma segunda relação. 

A preocupação de Rosa é juntar os trocados para colocar o feijão no fogo. “Me sinto sozinha, às vezes, mas é porque sou só pra tudo. Não por não ter um homem”. O que pesa sobre os ombros de Rosa pode não ter ligação com a ausência de uma troca afetiva, do amor romântico, propriamente, mas resulta de uma equação que sentencia mulheres negras sob normas de estigmas, rejeição e consequente solidão, analisa a doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), a socióloga Gabriela Bacelar.

É um deserto que diz sobre relacionamentos, mas que toca também as demais relações sociais, sintetiza Gabriela, ao observar a relação entre a tendência à solidão e o comportamento apresentado por Natália Deodato, uma das poucas integrantes negras da atual edição do Big Brother Brasil. 

Na semana passada, durante uma festa, a jovem manicure demonstrou tristeza ao constatar que, horas depois de a rejeitar, um colega de confinamento formou casal com uma mulher branca. “O choro dela é o de muitas de nós, ao longo da vida. E é uma forma de quebrar o silêncio e reivindicar o porquê dos padrões”, diz.

Para Bacelar, as lágrimas da jovem são partilhadas até mesmo por mulheres como Rosa. A manicure tem menos da metade da idade da baiana e ostenta o corpão que Rosa recorda jamais ter portado. Em comum entre elas, além da afrodescendência, está a infância marcada pelo trabalho braçal.

“É importante politizar o assunto. Política não é só um campo formal, distante de nossas relações cotidianas e de trabalho. Tudo isso [a solidão da mulher negra] está atravessado por questões que constituíram a sociedade, que é racista e que hierarquiza corpos”, explica Gabriela.

Ampla solidão
Natália, do BBB 222, tem vitiligo e costuma repetir o quanto é uma “mulher forte”. Rosa assegura o mesmo à reportagem. A jovem do reality considera, contudo, que pessoas negras “têm coração, sentimentos”, como quem dcomo quem diz que a sociedade está alheia ao fato. Ao passo que a diarista, sem nem tocar no ponto afetivo, divide o relato de uma mãe solo, sem emprego fixo, que tem a responsabilidade de criar e sustentar sozinha um adolescente.

“Fortes, resistentes, lutadoras. Por quê? Porque todos nós reconhecemos de primeira as dificuldades colocadas pelo racismo. O que mais mulheres negras podem ser, se tirarmos [o racismo] desta equação?”, indaga a pesquisadora.

Ao sentir-se só, Rosas e Natálias não refletem apenas sob a perspectiva de quem não tem um relacionamento, afirma a enfermeira Carine Luiza Costa, 37 anos. “Nunca é só uma questão afetiva. É uma solidão muito ampla, engole a gente”, relata Carine, ao compartilhar que viveu a primeira experiência sexual aos 24. 

“Fui criada sem pai. Na adolescência, eu e minha irmã ajudávamos nossa mãe na banca de frutas [em uma feira], só sobrava tempo para estudar para tentar ter um destino diferente”. 

Ainda assim, Carine atribui à aparência o fato de ter dado o primeiro beijo aos 19. “Eu era bolsista em um colégio particular e as meninas, brancas, iam ao shopping convidadas por outros colegas. Nunca fui. Eu pensava: ‘quem sabe se eu escovar o cabelo?’. Mas já entendia que aquilo era racismo porque minha mãe, mesmo com pouco conhecimento, tinha uma consciência racial meio instintiva, e falava muitas coisas sobre negritude. Até os 23, sexo não existia para mim”, relata a enfermeira, que enfatiza sua condição de mulher magra. 

Solidão por opção
Especialista em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça, Cláudia Isabele Pinho lembra que este tema costuma ser bastante discutido sob a perspectiva heteronormativa, mas que vai além. “A gente invisibiliza muitos casos. Não ter um homem ou não ter uma mulher, desconsiderando outros arranjos familiares, outras circunstâncias, como negras e negros no âmbito da escravização. Tudo isso proporciona similar solidão”.

A dificuldade de acesso a direitos básicos também remete a uma espécie de deserto, completa. “A solidão [da mulher negra] é um sentimento vivido sob outros conflitos, como a maternidade solo [vivida por Rosa] e tantas outras causas e consequências. A sociedade impõe períodos de solidão a corpos negros”, comenta Cláudia, que coloca a possibilidade da “opção ética” como uma outra face desta experiência.

O conceito parte da ideia de que, em uma sociedade racista e misógina, algumas mulheres — aquelas com maior “consciência racial e política” — escolhem ficar sozinhas, como forma de preservação. “Nesses casos, é natural que haja um intervalo entre um relacionamento e outro, ou que ela não veja em qualquer homem a representação do amor romântico”. A pesquisadora salienta, no entanto, que não é unanimidade. Trata-se, a propósito, de uma parcela que só existe devido à amplificação do ambiente democrático, defende Isabele. 

Feminismo negro
Ambiente incomum à diarista Rosa, que nunca antes refletiu a trajetória de relações, dores e violências que sofreu até livrar-se, há dez anos, da relação abusiva que suportou por sete. “Graças à luta do movimento negro, feminista, e todo o ecossitema dos direitos humanos. Houve um fortalecimento do debate público. Há 30 anos, o entendimento era outro. A geração atual acompanha a militância”, sinaliza a cientista social.

A solidão é descrita como um posicionamento político por Carla Akotirene, doutora em Estudos Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Ufba. “Cor, bagagem acadêmica, corporeidade, vitiligo ou por recusa a relações às escondidas”, enumera a pesquisadora, em publicação no Instagram, sobre a rejeição da manicure Natália.

O preterimento, continua Akotirene, não está resumido ao fato de ter ou não alguém para transar. Carla cita a autora feminista americana bell hooks (1952 - 2021) para lembrar circunstâncias em que mulheres dão sexo na expectivativa de afeto.

No contexto da solidão, a pesquisadora considera que todo mundo, de forma individual ou coletiva, conheceww as próprias expectativas “sexo amorosas”. No entendimento da escritora e feminista negra Joice Berth, toda mulher da pele preta já se percebeu sozinha. Em texto publicado nas redes sociais, Berth resume a negação de amor às mulheres negras como estratégia de enfraquecimento. 

“Usada pelo machismo e racismo, ambos aliados de longa data”. Nas palavras de Joice, o amor mercadológico — aquele que atende ao romantismo — é um caminho essencialmente excludente, pavimentado para o adoecimento. Imortalizada referência mundial do feminismo negro, bell hooks reivindica em sua extensa obra a condição de vida à base de pouco (ou nenhum amor) como a maior e mais dolorosa verdade sobre mulheres negras.