
Brasil
Quilombo, memória e futuro: a busca por liberdade iniciada nos quilombos resiste ao tempo diante das desigualdades estruturais
Entre a memória, cotas, violência institucional e apagamentos históricos, a luta por igualdade não cabe em um único dia e exige transformação contínua

Foto: Agência Brasil/Fernando Frazão
A luta da população negra no Brasil não cabe em um único dia de calendário. Ela nasce nos quilombos, ganha força em Palmares e continua viva muito depois de Zumbi – cuja liderança simbolizou resistência, organização comunitária e o direito à vida quando tudo insistia em negá-la. O aquilombamento, mais que refúgio, foi projeto político, cultural e social. Hoje, essa herança segue presente em territórios negros que, mesmo sob novas formas, ainda enfrentam velhos mecanismos de exclusão.
As batalhas herdadas e o fio de açoite histórico
Márcio Lima, presidente da Central Única das Favelas na Bahia (CUFA-BA), lembra que a linha que conecta o passado ao presente nunca se rompeu. “As lutas históricas começaram na resistência à escravidão e seguem na busca por terra, trabalho, dignidade e reconhecimento”, diz, ao apontar que a abolição de caneta deixou mais do que uma cicatriz aberta. “Ficou uma lacuna enorme da exclusão, que atravessa moradia, serviços, política e cultura”, aponta Lima. As pautas mudaram, mas não a estrutura. Atualmente, entram em cena reconhecimento, diversidade, interseccionalidade e diversas outras alternativas para entender e agir contra o que ficou, mas o racismo – estrutural ou não – segue a todo vapor.
Avanços visíveis e retrocessos silenciosos
O presidente da CUFA-BA destaca conquistas como políticas afirmativas, a presença de pessoas negras na universidade e maior representatividade na mídia. Mas aponta retrocessos profundos: violência institucional, encarceramento, precarização econômica e abandono de territórios. O dado mais duro vem da própria cidade onde vive: “Os meninos que nascem maioria na capital baiana viram minoria aos 15 anos”. A trajetória interrompida da juventude negra consegue refletir bem a persistência de políticas e práticas que reforçam desigualdades.
Até na cidade mais negra fora da África a barreira racial ainda é empecilho
Para Sílvio Humberto, vereador, professor, doutor e fundador do Instituto Steve Biko, Salvador esbarra nos mesmos impasses há décadas. “A barreira racial constitui um verdadeiro obstáculo que impede a ascensão coletiva da população negra. Individualmente passa um ou outro, mas coletivamente nós seguimos sendo inviabilizados e invisibilizados”, afirma. Ele critica como os serviços públicos são oferecidos abaixo do necessário e ainda existem hierarquias raciais em mobilidade, educação, segurança e moradia. “Somos parte da cidade, mas não somos tratados como cidadãos plenos”. Para ele, essa sensação de não pertencer ao próprio território revela o peso da estrutura racial no cotidiano soteropolitano.
“Então, enquanto isso não for de fato rompido e você não tiver políticas públicas e decisões políticas que vão do micro ao macro, nós permaneceremos nesse círculo vicioso da pobreza que tende a favorecer a manutenção das hierarquias raciais e, consequentemente, das hierarquias sociais”, diz Sílvio Humberto.
Aquilombamento e potência das periferias
Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas, lembra que a maior tradição de liberdade do Brasil nasce nos quilombos. “A luta quilombola é a mais longa tradição de luta por liberdade da população negra”, conta. Ele vê no aquilombamento moderno – organizações comunitárias, movimentos culturais e redes de cuidado – um caminho para reparar desigualdades mantidas após a abolição. Para ele, romper a lógica racial da cidadania exige revisar as bases da política pública e enfrentar estruturas que legitimam violências, como a atual política de drogas.
“A guerra às drogas não protege ninguém; ela legitima mortes”, diz Dudu Ribeiro.
Memória como ferramenta política e reparatória
A história, ou melhor, a memória pode ser uma das ferramentas mais importantes para a transformação. “Um povo que não tem conhecimento da sua história é como uma árvore sem raiz”, propõe Humberto. A história oficial, aponta, insistiu em apagar contribuições negras e indígenas, impedindo avanços civilizatórios. Recuperar essa memória é um passo decisivo para formular políticas que façam sentido e para fortalecer autoestima, pertencimento e futuro. Sem memória, afirma, “você incorpora a cultura do outro e não se reconhece”.
Passos para o futuro possível
As três vozes convergem num ponto: o futuro depende de políticas estáveis, participação social e valorização da potência das periferias. Márcio Lima defende investimentos contínuos nos territórios e não projetos pontuais. Dudu Ribeiro propõe uma visão de segurança baseada na vida e não na punição. Sílvio Humberto imagina uma Salvador onde a felicidade “não seja exceção, mas regra”, transformada pela dignidade e pelo rompimento da barreira racial. A luta que começou com Zumbi continua – e precisa ser lembrada, reivindicada e praticada todos os dias, não apenas no 20 de novembro.
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