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Sérgio Sampaio na Liberdade: o dia que o cantor e compositor gravou no bairro do Ilê

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Sérgio Sampaio na Liberdade: o dia que o cantor e compositor gravou no bairro do Ilê

Conheça a história das gravações que geraram “Cruel”, álbum póstumo do autor de “Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua”

Sérgio Sampaio na Liberdade: o dia que o cantor e compositor gravou no bairro do Ilê

Foto: Paulo Senra Breitschaft / Divulgação

Por: James Martins no dia 09 de janeiro de 2020 às 09:30

Sabe aquele disco que Sérgio Sampaio gravou em Salvador? Ou, melhor ainda: sabe aquele disco que Sérgio Sampaio gravou na Liberdade? Ah, não? Pois vai saber agora.

Em 2006, um álbum póstumo de Sérgio Sampaio chegava às lojas de todo o Brasil, para alegria da crescente legião de fãs do artista morto em 1994. “Cruel” tem 14 faixas inéditas e foi produzido por Zeca Baleiro, que convidou músicos como Bocato e Sacha Amback para acrescentarem seus instrumentos às gravações de voz e violão deixadas pelo autor de “Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua”.

Ao noticiar a proeza, jornais da época informam apenas que  Ângela Breitschaft, ex-mulher do compositor, entregou a fita com material inédito a Baleiro. Alguns arriscam falar em “gravações caseiras”. Mas, a verdade é que a história da maior parte dos fonogramas que geraram o álbum diz muito respeito sobretudo aos fãs baianos do lendário artista de Cachoeiro do Itapemirim, como Alípio Argeu, criador da página “Acervo Frases Sérgio Sampaio”, e nos obriga a falar um pouco da fase (pouco divulgada) em que SS morou em SSA.


Milton Dória montou o Estúdio Livre para estar mais perto da música (Foto: Tácio Moreira / Metropress)

E para contar essa história, precisamos convocar outro personagem tão amante da música quanto os já citados. Milton Dória, 61 anos, montou seu primeiro negócio aos 17, uma loja de sapatos na Rua Lima e Silva, avenida principal do bairro da Liberdade. Tão jovem era que precisou ser emancipado pelo pai. Anos depois, a Casa Dória trocou o ramo de calçados pelos materiais de construção. E no andar de cima da loja, tijolo por tijolo, foi sendo montado o Estúdio Dória, realização de um sonho. “A música sempre esteve no centro de tudo, para mim. Como não sou músico, decidi me aproximar dela pelo campo das gravações”, disse.

E continuou: “Desde criança o que eu pedia de presente eram gravadores. Quando ouvia um disco, queria saber em quantos canais tinha sido gravado e tal. Aliás, o primeiro gravador que ganhei de meu pai já veio com uma fita: ‘Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua’”. Era um presságio! O Estúdio Dória (ou Estúdio Livre), montado com equipamento conseguido de contrabando, sob direção técnica do experiente Filipe Cavalieri, custou 40 mil dólares e começou a funcionar em 1988, início do Axé Music. 

“Fundei o estúdio para gravar Lô Borges, artistas desse tipo, mas fui tomado pelo boom do pagode. A primeira gravação da música ‘Segura o Tchan’, cantada pelo próprio compositor, foi feita comigo”, explica Milton. Ali gravaram artistas como Margareth Menezes, Paquito e Roberto Mendes, além de inúmeros compositores querendo registrar suas canções para tentar encaixá-las no mercado. “Aquela música [‘I Miss Her’] do que hoje é Irmão Lázaro, que fez sucesso no Olodum, foi gravada no Estúdio Dória também. Depois, foi feita outra gravação para o disco da banda, mas a base percussiva usada é a nossa”, diz.


Com Xangai, gravando na Liberdade.

E entre os artistas que passaram pelo estúdio da Liberdade e estabeleceram bom relacionamento com Milton, está outro protagonista desta trama: Xangai, o cantador. “Ele gravou várias vezes comigo. Inclusive, fui eu que gravei aquele disco ‘Concerto Sertanez’ [1988], ao vivo no TCA”, lembra. E, num belo dia de 1993, tocou o telefone da Casa Dória - Material de Construção. Era Xangai. Um amigo compositor precisava registrar algumas canções para cavar gravadora por aí.

Ou seja, uma situação comum na rotina do Estúdio Livre. Só que com uma pequena diferença: o amigo de Xangai era Sérgio Sampaio. “Eu nem pensei duas vezes, disse logo: venha!”, empolga-se o técnico de som. “Era uma oportunidade para mim, né? Pra você ter uma ideia, hoje em dia eu tenho cinco exemplares de ‘Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua’, que considero um dos melhores álbuns da música brasileira. E tudo começou com aquela fita que veio em meu gravador”, completa.

Oportunidade, sim, mas não seria aquele o primeiro contato pessoal de Milton Dória com o brilhante compositor. Sérgio Sampaio já estava morando em Salvador havia alguns anos, a convite de Xangai, que, além de amigo, era seu compadre (padrinho de João Sampaio, o Menino João). “Ele dava canjas, às vezes, no projeto Quinturias, que Xangai fazia no bar e restaurante Segredos de Itapuã, que por sinal ficava em Piatã (risos), e eu ia assistir”. Tímido, no entanto, o colecionador de discos não tentou contato com o compositor ali.


Imagem feita em Salvador, preparando o disco (Foto: Márcio Lima).

Um dia, ele viu o anúncio, na coluna de Béu Machado no jornal A Tarde, de um show de Sérgio Sampaio no bar do Othon Palace, em Ondina. “Fui com uma namorada da época. Chegando lá, não tinha ninguém, só mais um casal. As mesas todas vazias. Aí aconteceu que ficamos conversando, Sérgio e eu, pedi música e tal, como se fosse um show particular”, lembra. E continua: “No fim do show, ele disse que ia para o aniversário do próprio Béu e me chamou pra ir junto, acho que queria uma carona (risos)”. Ainda dessa noite, Milton guarda uma lembrança engraçada: “Na festa estava Tânia Alves, toda paramentada. Quando Sampaio a avistou, foi logo dizendo: ‘Eu sabia que Durango Kid viria…’ (mais risos)”.

Voltemos à gravação. Fala, Xangai: “Sérgio era um vulcão como compositor, sempre em ebulição. E demonstrou vontade de gravar as canções que vinha compondo aqui em Salvador. Então procurei Milton, que foi super gente boa, nem cobrou nada”. O material serviria de demo para a gravadora Baratos Afins, do Rio de Janeiro. E, numa manhã de sábado, o capixaba chegava à Liberdade, o popular e populoso bairro do Ilê Aiyê, tido então como a maior concentração de negros fora da África.  

A Casa Dória - Material de Construção estava lotada. “Sábado, dia de maior movimento”, afirma o proprietário. Ninguém, porém, abordou o artista que chegava e que em 1972 estourou em todo o país. “O sucesso foi da canção, não meu”, declarou SS ao Jornal de Brasília de 17  de junho daquele mesmo 1993. E mais: “Eu não pretendia aquilo, não estava preparado para aquela loucura de segurança, avião, hotéis, shows consecutivos”. Seja como for, a necessidade de expressão artística levou Sérgio Sampaio novamente a um estúdio. E, enquanto no piso térreo clientes compravam milheiros de blocos para realizar o sonho da casa própria, no 1º andar o autor de “Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua” (que não pintou na sessão) mandava bala ao microfone.


Manuscrito do autor. Quais seriam as faixas 5 e 6 do lado B?

Infelizmente, não há fotos daquele dia. Há lembranças: “Antes de começar a cantar, ele ditava o título de cada música”, diz Milton. E Xangai: “Sérgio foi, além do compositor maravilhoso, um dos grandes cantores brasileiros. E nesse dia a gente viu e ouviu isso no estúdio”. Consciente da importância da ocasião, Dória foi sagaz. “Gravei em DAT (digital audio tape), que tem uma qualidade bem maior que cassete, e guardei para mim. Afinal, era Sérgio Sampaio ali na minha frente”, diz. E ainda: “Ele não era tão doido como todos acham. Ao contrário, muito educado e comportado. Quando errava, ao violão, pedia desculpas e recomeçava”.

Como oportunidades assim costumam ser únicas, Milton tratou de aproveitar. “Pedi para ele cantar ‘Dona Maria de Lourdes’ e ele cantou. Essa é uma faixa que não entrou no disco produzido por Zeca Baleiro, mas eu tenho”, disse. Informado da existência de material ainda inédito, fruto daquela manhã vivida por Sérgio Sampaio na Liberdade, Alípio, também cantor e compositor, exulta: “Estou até suando frio, rapaz! Isso tem que ser compartilhado. O Grande Público Sampaísta vai ficar feliz!”.


O CD produzido por Zeca Baleiro a partir das gravações soteropolitanas. 

O próprio Alípio publicou no YouTube o registro de um show do artista, daquele mesmo ano, feito no Cine Metrópolis da Universidade Federal do Espírito Santo. Por tudo isso, é de se entender que os ares soteropolitanos estavam fazendo bem a Sérgio Sampaio. Motivando-o a retomar a carreira havia muito interrompida. Em 15 de maio de 1994, porém, ele morreu, vítima de uma pancreatite. “Como não era Raul Seixas, saíram só umas notinhas pequenas na revista Veja e no Jornal Nacional. Me comovi muito quando soube”, lamenta Milton.

A respeito do paradoxal culto que se ergue em torno de SS, em relação ao pouco-caso midiático, Xangai reflete: “Funciona da mesma forma de apreciadores de Tião Carreiro, Elomar… Artistas de qualidade inquestionável, mas a mídia não dá importância. O que é veiculado é vergonhoso. Porém, no meio do povo tem sempre as pessoas não-alienáveis e elas não esquecem de Caymmi, Adoniram etc. E Sérgio Sampaio era um gigante, está nesse time”.

Entre os não-alienáveis do Grande Público Sampaísta, Zeca Baleiro, além de gravar a bela “Tem Que Acontecer” (“Vô Imbolá” - 1999), realizou o desejo do artista de lançar “Cruel”, para o qual um repertório prévio já estava até traçado de próprio punho. “Ele também ligou para a Casa Dória - Material de Construção para solicitar a fita DAT que Ângela tinha mencionado”, lembra Milton. Das 14 faixas do disco, oito são resultado daquela manhã de sábado na Liberdade. Assim, devem-se também ao idealismo do produtor musical que, em sua sensibilidade e dedicação, revela-se ele próprio um artista.

“A música, como já disse, tem muita importância para mim. Meu luxo é comprar discos”, diz Milton, que começou a coleção com o “Transa”, de Caetano Veloso. “Costumo comprar  vários exemplares do mesmo. ‘Manera Frufru Manera’, de Fagner, tenho vários. Toda a minha discoteca é composta, porém, de álbuns lançados entre 1972 e 76, para mim o auge da música popular brasileira”, reflete. Uma exceção: O LP “Magia”, de Luiz Caldas, lançado em 85. “Além dele despertar minha atenção, como artista, também me interessou o fato de se poder gravar um disco na Bahia”. Acabou ele mesmo seguindo o exemplo e, alguns anos depois, o menino do toca-fitas gravou, ainda que involuntariamente, o último disco de Sérgio Sampaio. Como se vê, cada um tem seu bloco pra botar na rua.