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Roberto Carlos: mortais não são reis à toa

Editorial

Roberto Carlos: mortais não são reis à toa

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas, professora da Facom/UFBA e colaboradora da Rádio Metrópole

Roberto Carlos: mortais não são reis à toa

Foto: Angelucci Figueiredo/Divulgação

Por: Malu Fontes no dia 22 de abril de 2021 às 09:38

Com raríssimas exceções e apesar do sucesso que fazem, as narrativas e as histórias de superação são um porre. Não pelas potências das vidas e das dores que elas narram, mas por ser praticamente impossível, para quem as escreve, não ceder à melosidade, ao clichê e à adjetivação ora cafona, ora exagerada, ora juntas. Essa já é uma razão mais do que suficiente para gostar de Roberto Carlos. Ao longo dos seus 80 anos de vida e dos 60 de uma carreira absolutamente bem-sucedida, a sequência de dores de sua vida pessoal foi tratada com toda e elegância do mundo. E não foram poucas as dores do rei.

Dentre a imensa obra de Roberto, que esta semana completou 80 anos, sem direito a festa por conta da Covid, sempre que se pede aos seus fãs mais incondicionais que citem as canções mais tocantes, dificilmente alguém aponta aquelas cujos versos falam de seus precipícios biográficos. Primeiro porque o que há de biográfico em seu repertório, quando há, passa longe da representação trágica que tantas dores poderiam adquirir no relato de pessoas ou poetas com baixa resiliência, a capacidade de superar abismos emocionais. Segundo pelo lirismo com que são tratadas.

Todo mundo conhece os versos mais clássicos de Roberto, das diferentes fases de sua carreira, mesmo quem não é contemporâneo e que herdou o seu canto dos primeiros álbuns como memória afetiva sonora do acervo familiar da infância e da adolescência, de avós, mães, tias. E aqui a ênfase é pelo fato de, inegavelmente, o público dele ser majoritariamente feminino, algo equivalente a um Chico Buarque mais popular, mais abrangente entre as mulheres. Chico por incorporar tão bem um eu lírico feminino. E Roberto por cantar tão bem o amor romântico numa perspectiva pouco assumida pelos homens.

Mas, para longe das fronteiras do amor, da rebeldia estilizada do iê iê iê, do Roberto religioso, ecológico e temático de nicho, ao falar para tipos específicos como caminhoneiros, mulheres de 40, baixinhas e gordinhas (sic), há o Roberto da dor física e psíquica inscrita na memória desde que a criança que era aos 6 anos sofreu uma tragédia que marcaria sua vida e sua história como ele gosta e não gosta de narrá-la. A criança que aos 6 anos sofreu um acidente em um dia de festa popular na cidade do interior onde vivia, Cachoeiro do Itapemirim/ES – e teve parte da perna esmagada por uma locomotiva ao cair na linha férrea. 

ACIDENTE - Se é difícil imaginar como essas imagens ficaram inscritas em sua memória, ele traduziu, na canção O Divã: “relembro bem a festa, o apito/e na multidão um grito/o sangue no linho branco/a paz de quem carregava/em seus braços quem chorava/e no céu ainda esperava/e encontrava a esperança [...]”. Há trechos da mesma história na canção Traumas, sobre coisas aprendidas com o pai e rememoradas na vida adulta. E, para além desse acidente infantil, a vida não foi exatamente generosa com o rei no universo das perdas de pessoas ao seu redor. 

Dos anos 80 para cá, foram cinco os traumas por morte: o pai, Robertino (1980), a primeira mulher e mãe dos 3 filhos, Nice Rossi (1990), sua companheira Maria Rita (1999, aos 38 anos), a mãe, Laura (2010, na véspera do aniversário de 70 anos de Roberto), e a filha mais velha do primeiro casamento, Ana Paula (2011, aos 47 anos). O filho de Roberto, Segundinho, foi perdendo progressivamente a visão até perdê-la completamente, por conta de um glaucoma congênito. Agora, durante a pandemia, está sob tratamento de um câncer de pâncreas, um dos mais agressivos. Atingido por dores sucessivas e dessa magnitude, Roberto construiu a carreira que construiu, inspirou centenas de artistas nessas décadas, cantou e compôs uma trilha do tipo unidade nacional e falou de amor como poucos, para multidões de diferentes gerações. Ninguém é rei à toa.