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Inofensiva ou maledicente, fofoca já foi ferramenta de sobrevivência e agora é ameaça online

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90 dias após temporal na Bahia, sobreviventes lutam contra traumas e descaso do poder público
Chuvas provocaram 27 mortes e deixaram 523 pessoas feridas; 25.901 continuam desabrigados e 58.691 desalojados
Foto: Guthierry Andrade / Foto cedida para Metropole
Reportagem publicada originalmente no Jornal da Metropole em 24 de março de 2022
Em luto pelas mortes, espremidos em casas de terceiros, morando em escolas ou abrigos improvisados. Esta é a situação dos habitantes de mais de 150 cidades baianas três meses após as grandes enchentes que afetaram o estado no fim do ano passado. Considerada a maior tragédia contemporânea da Bahia, as chuvas provocaram 27 mortes, deixaram 523 pessoas feridas, 25.901 desabrigados e 58.691 desalojados.
Os números ganham contornos mais dramáticos e comovem diante de histórias reais. Entre os óbitos desta catástrofe estão Cícero, um menino de nove anos, e Cecília, de apenas quatro. Os dois foram encontrados soterrados no deslizamento de uma casa em Itamaraju, extremo sul do estado, após duas horas de busca. Arrasados, os pais não falam sobre o assunto.
Keila Lima, tia dos garotos, tenta explicar o sofrimento remanescente na família desde a confirmação das mortes. “É muito difícil, principalmente para a mãe e o pai. Dos três filhos, dois se foram. Até hoje eles sofrem bastante”. Ela conta que a família, além de passar por dificuldades financeiras, chora as perdas precoces diariamente.
Desde a morte dos filhos, no entanto, eles tiveram que continuar trabalhando para reparar os danos da casa. “Não tem jeito. Infelizmente, a rotina tem que voltar”, lamenta Keila.
Traumas
Mãe de dois meninos, a autônoma Poliana Santana, de 25 anos, relembra que a sua casa foi a primeira a ser destruída pelas fortes chuvas em Ilhéus, no sul da Bahia. “Só deu tempo de correr e gritar”.
Na ocasião, perdeu tudo e a sua residência foi condenada pela Defesa Civil. De mãos vazias, se abrigou na casa da sua mãe. No dia seguinte, parte desta casa também desabou com o impacto das precipitações. O seu filho, de sete anos, foi quem viu primeiro a avó soterrada, apenas com a cabeça para fora. “Agora, quando chove, ele entra em pânico. Grita que quer ir embora, pede socorro. Está traumatizado”, revela.
Socorrida por vizinhos e por bombeiros, a mãe de Poliana sobreviveu ao abalo, mas, ferida, passou a precisar da ajuda da filha, que, ao lado do marido, está reconstruindo a casa do zero, recebendo doações de materiais de construção. “Minha mãe trabalhava fazendo salgados e com manicure. Mas ela ficou com a perna e o braço atingidos e já não consegue mais”, diz.
Na tragédia, a faxineira Sirlane Rosa Ferreira, 32, ficou sem guarda-roupa, cama, estante e armário. Moradora de Ibicaraí (região sul), conseguiu fazer reparos na casa graças à ajuda dos patrões e amigos. “A cerâmica quebrou e a parede caiu, mas a gente conseguiu consertar”, comemora.
Sem móveis, porém, os seus pertences estão armazenados em caixas improvisadas, no chão. Mas este nem de longe é o maior dos problemas. Todo dia que chove, o trauma reparece. “Outro dia deu uma chuva e levantei assustada, às 3h, para ver o rio”, diz.
O medo permanente também mora em João Alves, de 71 anos. “Se, por acaso, começa a encher o canal, eu dou o fora logo”, conta o aposentado. Morador de Itabuna, foi protagonista de uma das imagens mais marcantes da tragédia, sendo resgatado por um voluntário em um barco quando a água já chegava em seu pescoço.
Ação imediata
A ONG Grupo Amigos da Praia (GAP), em Ilhéus, tem acompanhado a situação dos municípios baianos. Foi a entidade que ajudou Poliana a arrecadar materiais para construir uma casa. Segundo a diretora do grupo, Jurema Cintra, depois de três meses, a preocupação com a catástrofe na Bahia foi diminuindo à medida em que outras desgraças ganhavam mais espaço no noticiário.
“Em Petrópolis, uma ONG, em um dia, arrecadou R$ 1 milhão. Aqui, nem perto disso. Não que as pessoas lá não estejam sofrendo, mas não dá para contar só com a solidariedade. Cadê as políticas públicas?”, cobra.
Segundo o GAP Ilhéus, apenas 26 famílias receberam o Auxílio Aluguel do estado na cidade. O número, segundo a ONG, é incompatível com a quantidade de pessoas desalojadas.
Procurado, o governo do estado disse que orienta os prefeitos das cidades a informar os danos causados pela tragédia como forma de buscar uma captação imediata de recursos. Disse ainda que forneceu 6,2 mil itens como geladeiras, colchões e fogão, além de doar 12 milhões de quilos de alimentos. A Defensoria Pública do Estado (DPE-BA) informou que abriu uma unidade móvel para atender as famílias afetadas, onde não exista uma unidade fixa do órgão.
Mesmo diante destes esforços, alguns ínfimos, a tragédia permanece viva em quem foi tocada por ela.
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