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Abandono e apagamento da história marcam dez anos do incêndio no Solar da Boa Vista
Espaço que já foi residência do poeta Castro Alves e sede da prefeitura de Salvador corre risco de novos desabamentos
Foto: Manuela Cavadas/Metropress
Reportagem publicada originalmente no Jornal da Metropole em 16 de março de 2023
Dez anos se passaram desde que o Solar da Boa Vista pegou fogo. Desde então, o descaso do poder público vem completando a destruição causada pelas chamas em 2013. O certa vez imponente casarão histórico de Salvador tornou-se uma estrutura abandonada, caindo aos pedaços. A vegetação crescente e o lixo que lá acumula-se continuamente tomam conta do espaço, que já foi residência de Castro Alves e sede da prefeitura de Salvador, e hoje só abriga ratos e baratas.
A praça que comporta o solar no Engenho Velho de Brotas chegou a ser definida como “a cracolândia de Salvador” pelo vereador Marcelo Maia (PMN). O local passou a ser estadia de dependentes químicos, segundo relatos de moradores da região que deixaram de frequentar a área pela sensação de insegurança.
“Oh! jardim solitário! Relíquia do passado!”. Mal sabia Castro Alves que os versos do poema “A Boa Vista”, que escreveu em homenagem à residência onde cresceu, seriam materializados quase 150 anos depois.
Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) há 70 anos, o imóvel do século 18 é alvo de um conflito entre o governo da Bahia e a prefeitura de Salvador. Toda a região do Parque Solar da Boa Vista pertence à gestão estadual, mas o prédio estava cedido à Secretaria Municipal de Educação quando foi queimado.
Na época do sinistro, os então governador Jaques Wagner (PT) e prefeito ACM Neto (UNIÃO) visitaram os escombros, ressaltando a importância do solar para a capital baiana. A cena, porém, não refletiu-se na responsabilização pela revitalização do prédio. Começou, a partir daquele ano, um jogo de empurra-empurra que persiste.
Em 2019, o imbróglio entre os poderes parecia ter chegado ao fim. O então secretário estadual de Saúde, Fábio Vilas Boas, anunciou na Rádio Metropole o projeto de instalação de uma central de diagnóstico de imagem no casarão. Logo depois, Rui Costa (PT) ratificou a ideia, também em entrevista na rádio. Quatro anos depois, no entanto, a proposta ainda não se concretizou.
O projeto de requalificação está pronto e foi liberado pelo Iphan antes da pandemia, mas até hoje não saiu do papel. Isso é um crime. Nós, moradores, entendemos que lá deveria ser casa da cultura, que tenha a ver com a história do local e de Castro Alves, mas, diante do quadro de abandono, qualquer coisa é melhor do que ver o prédio em ruínas”, denuncia o vereador Marcelo Maia, líder do grupo social A Voz de Brotas.
Questionada, a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab), que administra dois centros de saúde no local, não deu previsão para o início das obras. A pasta limitou-se a responder que “o Governo do Estado reavaliará de modo intersetorial uma nova destinação para a estrutura, bem como a sua revitalização”.
Morador do bairro há 35 dos seus 50 anos, o vereador Marcelo Maia acompanhou o processo de decadência do Solar da Boa Vista. "Eu alcancei o período positivo do local, com famílias fazendo piquenique. Hoje, é essa tristeza. Às vezes eu aciono a Limpurb, mas a prefeitura não quer fazer a limpeza porque a área é do estado e a Conder não tem equipe suficiente”, revelou.
Maia já acionou o Ministério Público, reuniu 2,5 mil assinaturas em abaixo-assinado, participou das reuniões do projeto de requalificação na gestão de Rui Costa (PT) e, no novo governo, conversou com Jerônimo Rodrigues (PT). Nada adiantou. Em mais uma tentativa, o vereador deu entrada com um pedido de audiência pública na Câmara Municipal no último dia 13.
A pedido do Jornal da Metropole, a Defesa Civil de Salvador (Codesal) fez uma vistoria no imóvel no dia 15. O laudo constatou o risco de novos desabamentos internos e a destruição completa dos telhado, assoalho e escadarias, além de usuários de drogas no local. O órgão encaminhou ao Iphan uma notificação “para a realização de intervenção”
Além dos centros de saúde estaduais, funciona na região o Cine Teatro Solar Boa Vista. Mas, também vítima do abandono, o empreendimento respira por aparelhos.
O teatro poderia ser oportunizado pela comunidade, mas nem sacizeiro quer ocupar aquele espaço, de tão abandonado que está. Antes, abrigava vários projetos e tinha sucesso de público, tenho várias lembranças boas das apresentações da minha antiga escola que aconteciam lá. E, de repente, vejo aquele prédio importante, maravilhoso, degradado. Não é só a violência, mas também o descaso com a cultura”, relembra o comerciante Sidney Nascimento, 44.
“Vendo deserto o parque e solitária a estrada”, como já parecia prever Castro Alves, o historiador Jaime Nascimento lamenta a degradação do solar. “É um absurdo para a história da cidade. O solar é importantíssimo, um patrimônio histórico e arquitetônico valiosíssimo. Você não vê isso em outros estados”, exprimiu.
Enquanto o impasse entre os poderes completa uma década, o Solar da Boa Vista vai sucumbindo às cinzas. Nesse cabo de guerra, quem perde é a cidade que vê queimar mais uma parte da sua história.
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