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Chico Buarque: uma voz que segue iluminando gerações

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Chico Buarque: uma voz que segue iluminando gerações

Jornal Metropole preparou reportagem especial para lembrar trajetória do músico que encerrou sua mais recente turnê na Bahia

Chico Buarque: uma voz que segue iluminando gerações

Foto: Divulgação/Leo Aversa

Por: Nardele Gomes no dia 04 de maio de 2023 às 07:00

Atualizado: no dia 04 de maio de 2023 às 09:19

Reportagem publicada originalmente no Jornal Metropole em 4 de maio de 2023

Filho de paulista, neto de pernambucano, bisneto de mineiro, tataraneto de baiano. Chico Buarque, um carioca, porta voz de sua geração e das seguintes. Uma história de amor com a arte, a vida num palco, um artista brasileiro.

Nasce Chico em junho de 44, o menino que se apaixonaria tanto por futebol que aprenderia a driblar os carimbos e os ‘proibidos’ da ditadura. Um homem que entenderia tão profundamente o âmago feminino que diria por elas coisas que nem elas mesmas saberiam dizer. O compositor que traduziria tão bem o sentimento humano em suas letras que acabaria premiado mundo afora por livros, poemas, histórias. Catalisador de uma identidade brasileira, malandra, sofisticada, carnavalesca e genial.

E A Banda sobe ao palco

O Brasil inteiro caiu nas graças de Chico Buarque em 1966, quando A Banda ganha o II Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record. Em 4 dias, o disco “Chico Buarque de Holanda” vendeu 55 mil cópias, hipnotizando a multidão com a história da cidadezinha que se alegra com a passagem de uma banda em tempos sombrios. “A minha gente sofrida / Despediu-se da dor / Pra ver a banda passar / Cantando coisas de amor”.

E os tempos ficaram mais sombrios

Chico Buarque foi um dos artistas brasileiros mais engajados em canções de protesto contra a ditadura militar. Depois de participar da passeata dos 100 mil, em junho de 68, e da peça Roda Viva, da qual foi autor também naquele ano, Chico virou alvo do regime, que editou em dezembro o AI 5. Chico parte pro auto exílio na Itália no mês seguinte. “Quando voltar, volte fazendo barulho”, recomendou o amigo Vinícius de Moraes.

E ele voltou

E encontrou um Brasil onde torturas e desaparecimento de pessoas contrárias ao regime eram frequentes. Os cartazes espalhados pelas cidades diziam “Brasil: ame-o ou deixe-o”, num ufanismo forjado nos quarteis. Parecia que aquilo não teria fim. Foi naquele contexto que escreveu uma de suas canções mais emblemáticas: “Apesar de você”. “Quando chegar o momento esse meu sofrimento vou cobrar com juros, juro / Todo esse amor reprimido, esse grito contido, este samba no escuro / Você que inventou a tristeza / Ora, tenha a fineza de desinventar / Você vai pagar e é dobrado cada lágrima rolada nesse meu penar”.

A genialidade do compositor

Depois vieram outros álbuns com músicas que peitavam o regime militar e letras que driblavam a censura. O disco “Construção” já começava com “Deus lhe pague”. “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir / A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir / Por me deixar respirar, por me deixar existir / Deus lhe pague”. Muitas de suas canções, porém, foram barradas, como Cálice, gravada em 73 e liberada somente em 78. Mas Chico daria um jeito. Em 74 lança um disco interpretando canções de amigos: Sinal fechado. Entre os compositores, estava Julinho de Adelaide, seu pseudônimo, que compôs “Acorda, amor”.

Ironia não é para todos

Os censores do regime, buscando a obviedade do protesto, deixaram passar “Acorda, amor”, embora nem fosse tão cifrada assim. “Acorda amor / Eu tive um pesadelo agora / Sonhei que tinha gente lá fora / Batendo no portão, que aflição / Era a dura, numa muito escura viatura / Minha nossa santa criatura / Chame, chame, chame lá / Chame, chame o ladrão, chame o ladrão”.

O universo feminino

Interpretando como poucos a alma feminina, Chico soube traduzir a complexidade desses sentimentos em canções como “Atrás da porta”, “Mil perdões”, “Cotidiano”, Folhetim”. “E eu te farei as vontades / Direi meias verdades / Sempre à meia luz / E te farei, vaidoso, supor / Que és o maior e que me possuis / Mas na manhã seguinte / Não conta até vinte / Te afasta de mim / Pois já não vales nada / És página virada / Descartada do meu folhetim”.

E o universo materno

Até mesmo a dor lancinante da mãe é alcançada por Chico em “Uma canção desnaturada”. “Te ver as pernas bambas, curuminha / Batendo com a moleira / Te emporcalhando inteira / E eu te negar meu colo / Recuperar as noites, curuminha / Que atravessei em claro / Ignorar teu choro / E só cuidar de mim.” Ou em “O meu guri”: “Quando, seu moço, nasceu meu rebento / Não era o momento dele rebentar / Já foi nascendo com cara de fome / E eu não tinha nem nome pra lhe dar / Como fui levando, não sei lhe explicar / Fui assim levando ele a me levar / E na sua meninice ele um dia me disse / Que chegava lá, olha aí.”

Uma geração que se multiplica

A juventude contemporânea de Chico Buarque tinha nele um eco da própria voz. Era um agitador, quase um justiceiro. A arte de Chico Buarque era autêntica, revolucionária, política, romântica, popular, profundamente representativa. Talvez somente aquela geração sinta sua música daquele jeito, mas a verdade é que as gerações seguintes se apossaram de Chico cada uma à sua maneira, somando a luta política de então com a atual e com todas as sofisticadas nuances artísticas em que ele primorosamente desfila.

Aos 78 anos lança “Que tal um samba?”, e convida a todos, velhos e jovens, a “cair no mar, lavar a alma / Tomar um banho de sal grosso, que tal?”. A aproveitar o fim de tempos recentemente também sombrios, e, depois de “uma dor fila da puta”, levantar. E “de novo com a coluna ereta, juntar os cacos, ir à luta / Manter o rumo e a cadência / Desconjurar a ignorância, e que tal puxar um samba?”

E lá vamos nós, Chico, cada um de nós e cada paralelepípedo das velhas cidades, arrepiados, louvando um samba popular a seus pés. Evoé!