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Arquivos secretos de uma briga: Documentos jamais publicados revelam detalhes da disputa entre ACM e o Jornal da Bahia

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Arquivos secretos de uma briga: Documentos jamais publicados revelam detalhes da disputa entre ACM e o Jornal da Bahia

Dossiê com documentação sigilosa dos órgãos de inteligência da ditadura traz à tona detalhes de como o Regime Militar acompanhou a briga de ACM com o Jornal da Bahia

Arquivos secretos de uma briga: Documentos jamais publicados revelam detalhes da disputa entre ACM e o Jornal da Bahia

Foto: Arquivo pessoal

Por: Biaggio Talento no dia 21 de março de 2024 às 09:18

Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 21 de março de 2024

Um dos episódios marcantes de perseguição política a um órgão de imprensa durante a ditadura, o cerco do então governador Antonio Carlos Magalhães (ACM) ao Jornal da Bahia, na década de 1970, ganhou detalhes inéditos a partir da documentação levantada pelo historiador Grimaldo Zachariadhes nos arquivos do regime militar. O material revela que, paradoxalmente, embora fosse um representante do regime na Bahia, ACM não teve o apoio dos militares na sua tentativa de sufocar o JBA. Ao contrário, quando a Justiça absolveu o editor-chefe João Carlos Teixeira Gomes no processo movido por Magalhães contra o jornalista, com base na Lei de Segurança Nacional (LSN), os militares se mostraram aliviados.

Um incômodo para os militares
O dossiê do caso, com 70 páginas, chamado de o “Problema do Jornal da Bahia” é formado por relatórios do SNI (Serviço Nacional de Inteligência), inúmeros recortes de jornais sobre a briga entre o então governador e o diário baiano, além de um bilhete escrito à mão por Magalhães, endereçado ao ministro da Justiça Alfredo Buzaid. Todo o material leva o carimbo de “confidencial” do SNI e revela a grande preocupação da ditadura com a repercussão negativa que a perseguição de ACM ao jornal estaria causando, pois a campanha de enfrentamento ao governador, lançada pelo JBA e batizada de “Não deixe esta chama se apagar”, vinha obtendo a adesão de vários órgãos da imprensa nacional e do exterior.

Doutor em História Política pela Fundação Getúlio Vargas, Zachariadhes participou da Comissão de Altos Estudos do banco de dados Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, que levantou a documentação sigilosa dos órgãos de inteligência da ditadura. Ele obteve cópias de todo o material do regime militar relacionado à Bahia, que está arquivado no Núcleo de Estudos sobre o Regime Militar (NERM) que o historiador coordena. Em relação à briga ACM x JBA, o historiador diz que fica clara a intenção dos integrantes da ditadura de acabar com a briga diante do desgaste para o regime militar provocado pelo seu representante maior no estado baiano.

"Não deixe esta chama se apagar"
Na informação “Nº 02921”, de 28 de abril de 1972, o agente do SNI constata que “continua repercutindo intensa e desfavoravelmente na opinião pública da Bahia, notadamente de Salvador, o litígio entre o Governador e o matutino Jornal da Bahia”. Segue dizendo que o diário vem recebendo manifestações de solidariedade da imprensa de vários estados “e até mesmo de organismos internacionais como a Associação Internacional de Imprensa”. As críticas aos governos estadual e municipal (cujos dirigentes eram nomeados pela ditadura nesta época em que as eleições para cargos dos Executivos estavam suspensas) vinham sendo feitas na Assembleia Legislativa e Câmara de Salvador, inclusive por parlamentares da Arena (o partido governista). Afirma ainda que a campanha “Não deixe esta chama se apagar” vem “sensibilizando bastante a opinião pública, granjeando a simpatia popular para o órgão, na condição de vítima e parte mais fraca”.

No último item do relatório, chamado de “Apreciação”, a análise sustenta: “As repercussões extrapolam o âmbito regional, assumem caráter nacional e mesmo internacional. Nos meios populares, onde predomina exclusivamente a emoção, assume o aspecto de injustiça e vingança e nas classes mais esclarecidas condena-se, principalmente os processos adotados pelo Governador ACM, não condizente com a moral revolucionária (…). O problema deveria ser solucionado com urgência, pondo fim a uma situação incômoda e de desgaste para as próprias autoridades federais. Há grande especulação em torno da não interferência do Governo Federal no assunto, indo desde a versão de que apoia o Governador, até aquela, que afirma que se trata de destruir economicamente o sr. João Falcão, face ao seu passado comunista militante, apesar de o mesmo haver abjurado publicamente daquela ideologia”. O governo federal tentou sem sucesso fazer com que ACM e Falcão fumassem o cachimbo da paz.

 

Chumbo trocado
A briga começou devido a matérias críticas à gestão de Magalhães. Ele, então, passou a exercer pressão para que empresas deixassem de anunciar no Jornal da Bahia. O matutino respondeu com uma postura de franca oposição ao governo estadual, embora mantivesse bom relacionamento com a cúpula do regime militar. Uma manchete denunciando suposto favorecimento de ACM foi o estopim que agravou a crise: “Governador favorece firma da qual ele próprio é acionista”, publicou o jornal em 16 de julho de 1972. A empresa citada na manchete era a Magnesita S.A. ACM resolveu, então, mover processo de calúnia e difamação contra o editor- -chefe do Jornal da Bahia, João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, com base na LSN.

A iniciativa desagradou os militares. O informe 137/21 de 20 de julho de 72 do SNI registra que ACM apresentou a Representação na Auditoria da 6ª Circunscrição Judiciária Militar. O que parece ter irritado mais a ditadura foi o fato de ACM não ter consultado os comandantes militares de Salvador “sobre a conveniência” da iniciativa. No entanto, Magalhães enviou cópia da representação ao ministro da Justiça Alfredo Buzaid acompanhado de um bilhete escrito à mão dizendo que sua iniciativa foi para salvaguardar “a honrosa função que exerço e a confiança que nunca me tem faltado do nosso eminente Presidente”. O ditador de plantão era Emílio Garrastazu Médici.

O editor-chefe do Jornal da Bahia foi absolvido do processo em março de 1975. Também faz parte do dossiê um bilhete de 4 de março de 1976 em que o chefe do gabinete do Ministério da Justiça, Alberto Rocha, manda arquivar o processo, indicando que o “sr. Antonio Carlos Magalhães já deixou o governo”. Mas o estrago na “moral revolucionária” já estava feito.

Elogios ao ditador
O dossiê é encerrado com o caderno especial “Quatro anos de resistência do Jornal da Bahia”, publicado pelo diário em 16 de março de 1975. Neste caderno se reproduz uma carta enviada pelos funcionários do jornal a Médici, pedindo que o governo federal não permita que ACM feche o matutino. Mas o que chama atenção são os elogios, pouco comuns ao general considerado o mais duro do período do governo militar: “Se resolvemos dirigir-nos a V. Excia., é porque sabemos que na Presidência da República se encontra um brasileiro esclarecido e justo, profundamente identificado com as aspirações do seu povo e com os interesses de quantos labutam por um Brasil mais próspero e mais forte dentre os quais legitimamente se incluem todos aqueles que trabalham em jornais e que sempre mereceram de V. Excia. o mais atencioso e respeitoso dos tratamentos. E também porque sabemos Sr. Presidente que a elevada formação moral de V. Excia. repudia quaisquer injustiças, ameaças ou perseguições (...)”.