Jornal Metropole
Leandro Demori, Cláudio Rabelo, Jessé Souza e Lídice da Mata são os entrevistados da Metropole na semana

Home
/
Notícias
/
Jornal da Metropole
/
Autêntico, polêmico e cheio de duplo sentido, pagodão baiano multiplica alcance nas redes e provoca debate
Entre o duplo sentido e a sonoridade envolvente, o pagodão baiano ecoa nas ruas, reflete vivências das periferias e ainda conquista espaço como objeto de estudo nas universidades
Foto: Metropress/Tácio Moreira
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 05 junho de 2025
Você já deve ter ouvido por aí que o baiano tem o molho ou ter presenciado as insistentes negativas quanto o tal do Pau Miúdo - calma, é só o bairro. Pode até ter escutado essas referências em uma voz diferente, quem sabe de Mário Kertész, ele mesmo, que parou no meio do comentário político e entrou na trend: recitou o pagodão como quem declama Drummond. Sim, Carlos Drummond de Andrade, o poeta, por que não? Afinal, esse gênero musical - que atrai muitos fãs mas também muitos críticos - pode ser a mais nova poesia baiana. Se poesia é o que emociona, provoca e transforma, por que ele não seria?
Um molejo quente e penetrante
Não foi só Mário Kertész. Nas últimas semanas, a internet resgatou o tal refrão “do Pau Miúdo não”. O hit de Tinno Flow voltou a cair nas graças de artistas e fãs do pagodão baiano depois de 10 anos. Mas o fenômeno é reflexo de um movimento que vem acontecendo com diversos outros sucessos antigos do gênero e abrindo as portas do Brasil para os mais recentes. O swing e as letras de duplo sentido - já conhecidos e valorizados na periferia baiana - caem cada vez mais no gosto do Brasil.
Jorginho Barbosa, compositor de sucessos cantados por Psirico, Léo Santana e Igor Kannário, não tem dúvidas de que o ritmo ultrapassou as ruas de Salvador. A prova, para ele, é a quantidade de feats (as chamadas participações em produções musicais) que os cantores e bandas vêm recebendo de artistas de todo o Brasil e gêneros. Anitta, Ivete Sangalo, Luan Santa e Xamã são só alguns dos que lançaram músicas com nomes do pagodão. "Hoje, o estilo entra em qualquer lugar do Brasil, do mundo, e entra com a cabeça erguida, sem medo", opina Jorginho. E quando ele fala “mundo” é mundo mesmo. Teve até um coreano, Kwon Min-sung, que ficou famoso nas redes sociais por dançar músicas do pagode baiano.
Foto: Metropress/TacioMoreira/Divulgação/PMS/Valter Pontes
É o sussexo torando na caixa de som
Que o pagodão é quente, está em alta e penetrando Brasil afora (la ele, claro), já deu para entender. Mas onde está a poesia? Você deve estar se perguntando se está nas letras sugestivas, no chamado “sussexo”. E a resposta é também. Porque se engana quem acha que é só groove e percussão que fazem a Bahia rebolar. O negócio aqui é mais profundo, mais malemolente, mais malicioso. A gente se joga mesmo é no “chupa toda” — calma, a uva — ou no que sua imaginação permitir.
É um tal de relaxar na bica, um tchuco gostoso de fazer, uma nega que gosta de mexer o balaio, uma raspadinha que todo mundo gosta e até uma famigerada madeirada. O que não falta são letras sugestivas, que não dá para negar: representam o humor, a criatividade e a irreverência daqueles que a cada palavra terminada em U acrescentam um “ivis”. E que trazem à tona também a sensualidade, o desejo e o prazer que o baiano não faz questão de esconder.
Gerações e gerações pervertidas
Mas tem muita gente achando que o duplo sentido é invenção de uma “geração pervertida”. Será? De acordo com o maestro Fred Dantas, o pagode surgiu nos anos 1990, puxado por grupos como Gera Samba e Terra Samba, que não precisaram de metáfora nem filtro para fazer sucesso. Era swing, percussão, dança coreografada e letra atravessada de segundas — ou terceiras — intenções. E fazia sucesso!
Sem licença e sem pudor
O próprio Luiz Caldas não soltou um “batom na boca e na bochecha” de forma inocente. A rodinha de Sarajane também tinha malícia. E enquanto o resto do Brasil ainda tentava entender o Axé, a Bahia já mandava ver no “pau que nasce torto nunca se endireita”, no “joga ela no meio, mete em cima, mete em baixo”, e no “bota a mão na cabecinha e começa a descer”. E não desceu nada. O pagode só subiu nos índices de audiência: invadiu as rádios, TVs, festinhas de condomínio e as quebradas.
O compositor Jorginho Barbosa reconhece que o duplo sentido sempre esteve na música, não só no pagodão. Mas, para ele, o diferencial é “quando há inteligência” nessa brincadeira: “é fazer algo que quem está ouvindo entenda e a música se torne picante, porque o pagode é picante, é corpo a corpo”.
Já o compositor Ailton Ferrugem vê com preocupação alguns caminhos que o gênero vem tomando. Para ele, algumas músicas atuais extrapolam limites e afastam públicos que antes se sentiam representados. "Vejo isso como uma agressão à letra. O pagode era uma música que qualquer um podia ouvir — criança, idoso, todo mundo podia dançar”, lamenta, citando que em muitas contratações por parte do poder público essas músicas são barradas, até por força da chamada Lei Antibaixaria.
Da putaria para a academia
Muitos pesquisadores de arte e cultura concordam que o pagodão merece ser estudado sem preconceitos e falso moralismo. A professora, pesquisadora e doutora em Estética e Comunicação Gabriela Almeida, baiana que integra o corpo docente da ESPM-SP, acredita, por exemplo, que negar o caráter político e social do gênero é negociar mal com a realidade.
“O gênero conversa com as questões das periferias de várias formas. Se quisermos ficar apenas no que parece mais evidente, que são as letras das músicas, temos diversos artistas que trazem para as canções tanto questões territoriais, mencionando nomes de bairros da cidade, quanto sociais e políticas, como o racismo e a violência: Psirico, Kannario, Fantasmão”, etc.”, explica.
Swingueira das ruas
Nas ruas, a visão é muito parecida. Fã assumido do pagodão baiano (em especial, do cantor Kannário), o estudante de Análise de Sistemas Fabiano Santos enxerga o gênero além da diversão. Para ele, é o “swingão” essencial para curtir de uma forma intensa, mas também é a força da pulsação baiana: “a identidade da cidade como um todo e a expressão da nossa cultura".
Há, no entanto, quem discorde. Isaac Silva, professor de química, e também ouvinte do pagodão, pontua: o gênero não é a identidade da cidade, é a identidade da periferia soteropolitana. E, para ele, há no pagode baiano um fator que merece destaque: o fato de provar que a população periférica é capaz de produzir arte e conhecimento artístico a partir de suas vivências, que muitas vezes são negligenciadas e diminuídas.
O negócio é mais profundo (la ele)
Há uma fronteira bem desenhada entre quem consome e onde se consome. No Carnaval, por exemplo, basta olhar quem vai atrás do trio de Léo Santana e quem segue o de Kannário. Ambos arrastam multidões, mas com públicos separados por mais do que as famigeradas cordas: raça e classe separam essas pipocas com mais força que qualquer segurança de bloco.
Para Gabriela Almeida, existem propostas muito diferentes dentro do próprio pagodão e quando se tem uma visão muito genérica, desconsidera-se esse aspecto. “Xanddy faz uma música muito diferente do La Fúria, que por sua vez é muito diferente d’Oh Polêmico ou d’O Poeta, ainda que tenha pontos de aproximação na incorporação de sons mais eletrônicos. O Psirico musicalmente é um absurdo, uma banda capaz de aglutinar elementos de diversas expressões e fazer uma música que é ao mesmo tempo pop, macumbeira, eletrônica. Eu não sei de onde vem o Psirico, só sei que é do futuro”.
“E você, tinho, mora onde?”
Para provar que esse assunto dá ainda dá muito caldo – ou molho se você preferir – vamos terminar com uma provocação: onde costuma ouvir o pagodão da Bahia, na rádio, nos paredões, no Carnaval, no Spotify? Talvez o seu local de consumo desse gênero lhe traga perspectivas muito diferentes sobre o tema e tentar entender as diferentes visões pode enriquecer nossas próprias histórias.
📲 Clique aqui para fazer parte do novo canal da Metropole no WhatsApp.