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Fragmentado, digital e influente, movimento evangélico adapta estratégias e se consolida como força sociopolítica
Com base nas periferias, nas redes e nas urnas, expansão do movimento evangélico transforma o mapa da fé, da política e da cultura no Brasil
Foto: Repdodução
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 12 de junho de 2025
O Brasil não virou evangélico da noite para o dia, mas a transformação parece cada vez mais acelerada. Os dados do Censo 2022 confirmam o que já se sentia nas periferias, nas redes sociais e nos corredores do poder: os evangélicos saltaram de 21,6% da população em 2010 para 26,9% em 2022, enquanto os católicos despencaram de 65% para 56,7%. Na Bahia, terra de todos os santos e orixás, não foi diferente: os católicos perderam terreno, os evangélicos mantiveram o ritmo de crescimento e os adeptos de umbanda e candomblé triplicaram — mesmo assim, ainda não passam de 3% da população.
Vitrine crente
Não são só os números que anunciam esse crescimento. Os negócios evangélicos (da moda gospel à restauração de bíblias), a expressiva bancada da fé nas Casas Legislativas, o sucesso de influenciadores, humoristas e bandas evangélicas — do trap ao pagode (ou pagod, em referência a “God”) — mostram a força do movimento não só na fé, mas também nos negócios, nas redes e na política.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
De Deus para o mundo
A grande mudança das igrejas evangélicas ocorreu a partir dos anos 1980, com um ajuste no discurso e sua entrada em diversos setores da sociedade. Até então, o evangélico era visto como alguém afastado das “coisas mundanas”, que evitava até passar na frente de um bar e acreditava que política não combinava com fé.
Isso muda com a formação da primeira bancada evangélica na Assembleia Nacional Constituinte. Rompe-se a ideia de que o mundo é do diabo e surge a estratégia de “estar no mundo para convertê-lo”. O televangelismo ganha destaque, e até blocos de Carnaval evangélicos aparecem.
Um fenômeno de luz na periferia
A força do movimento evangélico está na adaptabilidade, mas também na penetração. Prova disso é que, seja em grandes e luxosos templos nas vias principais da cidade ou em espaços com portas pequenas e cadeiras de plástico nas periferias, há em todo bairro uma igreja evangélica, que, para os mais vulneráveis socialmente, se torna um celeiro de lideranças e apoio.
Nas periferias, os fiéis têm na igreja evangélica um local de comunidade, onde podem encontrar ajuda para conseguir um emprego ou para cuidar das crianças, onde compartilham seus problemas com os filhos, onde cantam e são ouvidos, onde podem liderar. É por isso que esses templos crescem sobretudo nesses bairros, porque eles fazem essas pessoas sentirem que “existem”.
Nova geografia da fé
A pastora e historiadora Gicélia Cruz defende que a expansão evangélica se deve à capacidade de incluir socialmente os convertidos. As igrejas ocupam espaços onde o Estado está ausente.
Em 1815, a corrente anglicana chegou ao Brasil sem foco no proselitismo, com cultos em inglês para europeus em bairros como o Campo Grande. No fim do século XIX, surgiram as igrejas históricas (batistas, presbiterianas, luteranas), seguidas pelo pentecostalismo no século XX e, nos anos 1970, pelo neo pentecostalismo — este com um claro “projeto político de poder”.
E não se enganem: na Bahia, os primeiros convertidos foram negros no século XIX, vindos do catolicismo e do candomblé — numa convivência sem conflito, até que a politização recente tensionou essa relação.
O transatlântico católico ainda navega
A jornalista Anna Virginia Balloussier, autora de O Púlpito, compara o movimento evangélico ao católico. Apesar da queda, os católicos ainda são maioria e demonstram resiliência. Para ela, enquanto as igrejas evangélicas se beneficiam de estruturas mais flexíveis e métodos ágeis de expansão, o funcionamento da Igreja Católica é mais rígido e lento. Só pensar na abertura das igrejas: a católica exige uma série de formalidades, um padre que estudou Teologia e Filosofia, recebeu a ordenação diaconal e sacerdotal e prega a missa seguindo os preceitos do Vaticano. Já o pastor pode ser alguém conhecido da comunidade, sem necessariamente uma formação acadêmica e em um espaço que pode ter apenas cadeiras de plástico e um púlpito. É como um transatlântico e uma série de jet skis navegando no oceano, compara Balloussier.
O transatlântico: "pesado, lento para manobrar, mas difícil de afundar", devido à sua hierarquia rígida e verticalizada, onde "para você abrir uma paróquia nova, nomear um bispo, formar novos padres, tudo tem que ter anuência do Vaticano”. E os jet skis: adaptáveis, fáceis de manobrar, mas também de dispersar.
Não é marola, mas também não é tsunami
Apesar do crescimento, esperava-se que os evangélicos já fossem um terço da população a essa altura. Isso significa que o movimento não é um tsunami, mas também passa longe de ser apenas uma marolinha. Para a jornalista Anna Virginia Balloussier, um dos motivos para esse salto não ter acontecido está justamente em uma das forças do movimento evangélicos. “Pode ser uma fonte de fraqueza também essa fragmentação das igrejas evangélicas. Os católicos têm aquela estrutura verticalizada, forte, hierarquia do Vaticano, que em algum ponto também também os prejudicou. Mas os evangélicos têm essa fragmentação extrema das igrejas, que não têm um líder mais centralizado. E aí a gente vê tanto as grandes igrejas quanto as minúsculas formarem muitas dissidências”, avaliou.
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Refúgio, acolhimento e voltagem política
Outro fator que pode ter freado o crescimento é o tom político crescente nos templos. O acolhimento espiritual dividiu espaço com a belicosidade eleitoral. Em partidos ligados a igrejas, há até divisão de templos por candidato. Quanto maior o engajamento do pastor e o volume de fiéis, maior o caráter “mina de ouro” da igreja.
Do altar para a bancada
Nas urnas, o número de candidatos evangélicos vem crescendo. Em 2024, foram 7.380 — um salto de 225% em 24 anos, 82% ligados à direita. Enterrou-se o antigo "crente não se mete em política" e consolidou-se o lema "irmão vota em irmão", guiado pela Teologia dos Sete Montes – que prega a ocupação de espaços de poder para influenciar a sociedade com valores cristãos.
Tempo de progressistas e conservadores
Esse protagonismo político gera contradições. A bancada evangélica tradicional avança com pautas conservadoras, mas há vozes como a do deputado Pastor Henrique Vieira (PSOL), que denunciam o uso político da fé. “O bolsonarismo transformou púlpitos em palanques, criando divisões até dentro das igrejas", diz em entrevista ao Jornal Metropole. Do Psol, o parlamentar tem se destacado como um dos poucos nomes da bancada evangélica alinhados a pautas da esquerda e com uma relevância semelhante a dos bolsonaristas nas redes sociais - ou nos chamados púlpitos digitais.
Segundo um levantamento da Quaest, 9 dos 12 pastores mais influentes nas redes apoiaram Bolsonaro. Mas, em 2023, pela primeira vez, três nomes “progressistas” apareceram na lista de relevância digital, com mais de um milhão de seguidores.
A revolução dos púlpitos digitais
A linha tênue que passou a separar as “coisas do mundo” e as “coisas de Deus” é válida também para as redes sociais, elas não são necessariamente profanas, podem ser, na verdade, instrumentos da fé. A internet democratizou os púlpitos e criou uma nova geração de pastores-influencers. O fenômeno do missionário Miguel Oliveira, pastor mirim de 15 anos que acumula mais de 1,4 milhão de seguidores no Instagram, é apenas a ponta do iceberg de uma transformação que deixou muitas igrejas tradicionais para trás. E os números confirmam essa sedução digital: Na faixa de 10 a 14 anos, 31,6% já se declaram evangélicos. É a geração do TikTok que assiste ao culto no celular.
Juventude conectada e fé digitalizada
A nova geração evangélica não se parece com a dos seus pais. Ela não se contenta com cultos tradicionais, de duas horas. Quer Instagram, TikTok, música eletrônica e pastores que falam sua linguagem. E têm opções: desde a igreja para fãs de heavy metal até aquela que substitui o púlpito por uma prancha de surf e oferece uma série de esportes radicais para seus fiéis. Pastor filiado à Ordem dos Pastores Batistas do Brasil e Mestre em Teologia, Joás Menezes explica que esse novo modelo de igrejas mais informais seguem uma trajetória que, ao invés de esperar que as pessoas cheguem, vão ao encontro delas. “Falam sua linguagem, entendem seus códigos culturais e oferecem um ambiente com o qual eles se identificam, seja pela forma de se vestir, pela música ou pelo jeito de se comunicar”, explica.
Mas a doutrina cede espaço?
Para alguns, essa modernização cobra um preço. A doutrina dá lugar ao entretenimento e ao espetáculo. Pastores-influencers vendem lifestyle e prometem prosperidade espiritual e material. A fé se torna produto, e muitos fiéis não distinguem fé e propaganda.
O marketing da salvação
Por trás do crescimento evangélico, há uma máquina econômica poderosa. Dízimos, ofertas, produtos licenciados, shows gospel, editoras cristãs, a fé virou indústria bilionária. Megaigrejas constroem impérios midiáticos, pastores viram celebridades e templos viram shoppings da salvação. Mas esse poder também abre espaço para escândalos: disputas familiares, práticas abusivas, lideranças controversas.
Disputa de louvor
A disputa religiosa vai além da fé. Ela busca oferecer sentido e acolhimento em um país desigual. Enquanto uns prometem milagres, outros oferecem tradição. O futuro religioso do Brasil não será decidido pelo tamanho dos templos, mas por quem conseguir conciliar fé, inclusão e justiça social.
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