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Tradição em playback: entre cenografia e cachês milionários, interior é destaque no São João, mas subvalorizado durante o ano

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Tradição em playback: entre cenografia e cachês milionários, interior é destaque no São João, mas subvalorizado durante o ano

Entre o brilho dos LEDs e os milhões dos cachês, o São João baiano esquece quem acende a verdadeira fogueira da cultura popular

Tradição em playback: entre cenografia e cachês milionários, interior é destaque no São João, mas subvalorizado durante o ano

Foto: Metropress/Tacio Moreira

Por: Laisa Gama no dia 19 de junho de 2025 às 07:56

Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 19 junho de 2025

Todo mês de junho é igual na Bahia. Já nas primeiras semanas começa o fluxo migratório temporário: moradores de Salvador e Região Metropolitana pegam a estrada rumo ao interior do estado, vestindo roupas quadriculadas, botas de todos os tipos e um amor repentino pela vida rural. O São João chega e com ele uma encenação coletiva da identidade cabocla. Mas, fora do período junino, o interior é lembrado como protagonista e produtor de cultura ou fica só na figuração como abastecedor da capital?

Uma nação de caboclos esquecida

Essa provocação não é de agora e ganha voz na análise de uma série de estudiosos. Um deles é o cantor, compositor e pesquisador Roberto Mendes, que denuncia: a Bahia está em desequilíbrio na representação de suas culturas. "Se o Estado entendesse que a Bahia Grande não se faz só com a Nação Iorubaiana, mas também com a Nação Cabocla, talvez começasse a ser melhor representada dentro do Brasil", afirma o artista, referindo-se às culturas do Recôncavo, Sertão e Agreste, frequentemente apagadas do discurso oficial sobre a identidade baiana.

Hegemonia praiana

A "Bahia Cabocla" à qual ele se refere representa quase 60% de todo o estado e é a expressão viva dos povos do interior: uma mistura de saberes indígenas, sertanejos, religiosos e rurais que moldam festas, lendas, ritmos e modos de vida. Essa identidade, porém, tem sido colocada à margem por um discurso hegemônico centrado na herança afrodescendente de Salvador e do Recôncavo mais imediato. Não se trata aqui de uma comparação entre culturas e nem uma separação entre litoral e interior, mas da necessidade de reconhecimento e de uma representação mais fiel da cultura baiana. “Afinal, não tem como reduzi-la a uma coisa só”, pontua Roberto Mendes.

A força do capital na capital

Essa sobreposição da cultura soteropolitana tem, para Roberto Mendes, um gatilho: o capital da capital. É com vistas no retorno financeiro que as marcas e empresas invistem 75% do seu potencial nas grandes cidades. É o retorno eleitoral e de visibilidade que faz com que os poderes públicos, administradores e legisladores tenham olhares mais atenciosos para as capitais. E quando a atenção se volta para o interior, como acontece no São João, o trabalho, aponta Roberto Mendes, não é de valorização e preservação da cultura, é de festa.

O que vem de fora vale mais

Mesmo nos bastidores das festas, o desequilíbrio salta aos olhos. Por isso, vira e mexe, a discussão sobre a preservação da cultura do interior no São João se concentra na contratação de artistas. É reduzir uma discussão muito mais ampla, mas faz sentido. Neste ano, por exemplo, os maiores cachês, que beiram ou até ultrapassam a casa do milhão, ficaram com artistas do sertanejo (cultura do centro-oeste) ou do chamado forró estilizado. Wesley Safadão, Nattan, Zé Neto e Cristiano, Ana Castela, por exemplo, receberam mais de 800 mil reais por apresentação. o forrozeiro Adelmário Coelho não vê problema na contratação de artistas de fora, mas cobra que eles não sejam maioria nas grades. Não dá para ser 80% das apresentações de ritmos importados e apenas 20% de forró e xote. A decisão de perpetuar esse lado da cultura está, segundo ele, nas mãos dos gestores públicos.

Foto: Setur/Tatiana Azeviche

O que vem de dentro vale menos

Mas enquanto isso não acontece, mestres populares ensinam de graça, grupos de reisado ensaiam em terreiros de barro, sanfoneiros consertam o próprio instrumento porque não têm patrocínio nem apoio, quadrilhas juninas pedem ajuda em vaquinhas online. Em cidades do Recôncavo e do sertão baiano, grupos tradicionais não recebem sequer o custeio do transporte.

Quando a cultura vira cenografia 

Chapéu de palha, toalhas de chita e em muitos lugares até casinhas de barro decorando a cidade. A cultura local virou recurso cênico. Professor de História aposentado na Universidade Federal da Bahia, Milton Moura, faz questão de lembrar que o São João não é apenas uma festa do interior, é uma representação do meio da roça, uma festa regada a amendoim, milho e seus mais de 20 pratos típicos, acompanhados do licor e da cachaça - bebidas escolhidas porque não havia geladeira para resfriar a cerveja.

Dente preto e a ridicularização do tabaréu

Mas essa realidade passa longe das festas juninas que ganham destaque uma vez no ano. E não só passam longe, como são deturpadas. Toda essa caracterização, disseminada com discursos temporários de “I Love roça”, é muito mais uma caricatura e até ridicularização. “Pode perguntar a qualquer pessoa da roça se ela usa roupas remendadas para as festas, elas gostam de roupa nova. É uma tentativa de representar essa população como tabaréu. Coloca-se até uma manchinha no dente, uma brincadeira cruel que faz com o outro”, afirma o professor de História.

Para o professor Milton Moura, essa representação vem também da tirania da cidade, que desvaloriza o trabalho braçal e da terra - ele só é válido quando relacionado aos cifrões da agroindústria. Na própria música, a roça deixou de ser cantada ainda na fase de Leandro e Leonardo e Chitãozinho e Xororó. Nos supermercados, apesar de quase tudo ser produzido lá, as principais prateleiras não vão para os itens típicos da zona rural. Até mesmo para representar a cultura da roça no São João buscou-se a quadrilha, uma dança típica francesa. Enquanto isso, pontua o historiador, trabalhadores da terra no sul do país não são ridicularizados, são glorificados.

Festa não é folclore, é resistência

A dinâmica é clara: a capital consome o que o interior produz. A comida típica, os ritmos tradicionais e o espaço físico da festa. Mas as estruturas de incentivo cultural, as verbas, os editais e a visibilidade seguem concentrados em Salvador e nos circuitos artísticos consagrados. Na mídia, a cultura soteropolitana segue representando toda Bahia. E se antes o São João era momento de protagonismo da nação cabocla baiana, agora aparece apenas em peça decorativa entre shows de pirotecnia e playlists padronizadas. É o mesmo som em todas as cidades, como se a Bahia tivesse esquecido seu sotaque. A fogueira virou LED. A sanfona virou playback. A memória virou produto. Em vez de tradição, o que se vende é entretenimento genérico — embalado por discursos de valorização da cultura que não resistem à primeira música do setlist.