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Da faísca ao fogo: Como o Boca de Brasa incendeia a cultura de Salvador há quatro décadas

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Da faísca ao fogo: Como o Boca de Brasa incendeia a cultura de Salvador há quatro décadas

Criado em 1986 durante a redemocratização do país, projeto Boca de Brasa formou gerações de talentos populares e hoje é peça-chave da política cultural da cidade

Da faísca ao fogo: Como o Boca de Brasa incendeia a cultura de Salvador há quatro décadas

Foto: Secom/Bruno Concha

Por: Daniela Gonzalez no dia 26 de junho de 2025 às 08:51

Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 19 junho de 2025

No calor da redemocratização brasileira . Em 1986, com Mário Kertész à frente da primeira gestão municipal eleita após a ditadura militar, nascia a Fundação Gregório de Mattos (FGM), órgão responsável por organizar e promover a política cultural do município. Foi nesse novo cenário que surgiu o Boca de Brasa, um projeto itinerante que colocou os artistas populares no centro da cena — literalmente. O projeto foi se fortalecendo a ponto de se tornar uma proposta de política pública permanente, conectando, ainda hoje, milhares de artistas, trabalhadores da cultura e um público cada vez mais presente e engajado.

A brasa nunca apagou
Durante a gestão de Kertész, o projeto foi coordenado pelos diretores teatrais Walter Seixas e Bertrand Duarte e contou com uma equipe jovem de artistas inspirados pelo movimento tropicalista. Estima-se que, entre 1986 e 1988, mais de 600 mostras culturais tenham sido realizadas — em alguns casos, com apresentações dobradas no mesmo dia, tamanho era o interesse dos bairros.

Nomes de peso atuaram para impulsionar o projeto. Wally Salomão, João Jorge, Gilberto Gil e Antônio Risério foram alguns deles. À frente da presidência da FGM entre 1987 e 1988, Gil deu ao projeto um caráter profundamente voltado à valorização das expressões populares. Já Risério, antropólogo e membro da diretoria, esteve diretamente envolvido na formulação conceitual do Boca de Brasa, defendendo a importância de mapear a diversidade cultural da cidade como ponto de partida para políticas públicas efetivas.

O projeto seguiu ativo até 2003, com algumas interrupções. E mesmo quando saiu de cena, a faísca permaneceu. Em 2013, já na gestão de Fernando Guerreiro à frente da FGM, o Boca de Brasa ressurgiu em novo formato. O primeiro destaque do projeto, segundo Guerreiro, é a ponte com o passado: a longevidade. Para ele, o fato de o Boca de Brasa ter mais de quatro décadas de existência comprova sua potência e relevância para a cidade.

Foto: Secom/Angelo Ponte

Memória da cena artística
“Eu fiz questão de resgatar esse projeto porque ele faz parte da memória de Salvador e dos artistas da cidade. Muita gente tem lembrança ligada ao Boca de Brasa, começou a carreira, frequentava quando era criança, assistia. O Boca de Brasa atravessou várias fases”, conta Guerreiro, lembrando que no início da nova fase do projeto um caminhão-palco saiu percorrendo 23 bairros da cidade levando arte. Eram 15 dias oferecendo oficinas e depois apresentações de encerramento. “Hoje temos 11 espaços Boca de Brasa, entre unidades da prefeitura e parcerias, ocupando praticamente todas as regiões da cidade. A ideia é chegar a 15”, revela.

Esquentando a cultura periférica
A proposta surgiu com uma missão simples e poderosa: incentivar, promover, registrar e movimentar a cultura da cidade em toda a sua diversidade. Teatro, dança, música, toda manifestação artística era bem-vinda, sem distinção de linguagem, gosto ou estilo. E mais: qualquer pessoa podia subir ao palco. Não qualquer palco, carretas-palco que rodavam bairros periféricos de Salvador, levando espetáculos criados pelas próprias comunidades.

Foto: Acervo

Explosão nas ruas
A participação era livre, democrática e espontânea. Quem conta isso é o antropólogo Roberto Pinho, que coordenou a campanha eleitoral do prefeito e, mais tarde, tornou-se secretário de Programas Especiais.

“O Boca de Brasa nasceu para incluir e integrar a periferia à cena cultural da cidade. Porque a periferia sempre foi produtora de cultura e só precisava de estrutura. Era preciso oferecer um espaço, dar uma moldura para essas expressões se manifestarem. Se alguém queria cantar, havia um microfone e um sistema de som. Se queria dançar ou encenar uma peça, tinha um palco à disposição. O projeto garantia as condições técnicas para que a arte da periferia pudesse, de fato, acontecer”, explicou.

Se o Centro da Cidade ganhava destaque, o Boca de Brasa seguia o sentido contrário: rumo às ladeiras de terra batida, às praças sem palco, aos lugares onde a cultura já existia, mas era invisível aos olhos oficiais. Para a equipe da recém-criada FGM, essa era também uma forma de mapear os territórios culturais da cidade e reconhecer lideranças locais.

As fagulhas que puseram fogo no Boca de Brasa vieram de outro projeto denominado Roda Coração, idealizado pelo produtor Luiz Carlos Ripper, já na primeira gestão de Mário Kertész. O projeto original, mais ambicioso, acabou não sendo implantado, mas a ideia de descentralizar a arte e valorizar a criação comunitária se manteve viva no Boca de Brasa, que estreou também com um forte impacto na cena cultural de Salvador.

Um fogo que ainda arde
A partir de 2018, o projeto se fortaleceu ainda mais. O primeiro Espaço Cultural Boca de Brasa foi inaugurado no Subúrbio 360, em Coutos. Até 2020, vieram mais três: Cajazeiras, Valéria e o Centro.

Com o tempo, o programa se expandiu. Parcerias com organizações da sociedade civil levaram ações formativas a comunidades como Candeal, Bairro da Paz, Nordeste de Amaralina e Cajazeiras. Em 2022, com a união entre a FGM e a Secretaria de Desenvolvimento, Emprego e Renda, nasceram os Polos Criativos Boca de Brasa — zonas culturais que extrapolam os espaços fixos e irradiam cultura para os territórios ao redor.

Em 2023, as Escolas Criativas Boca de Brasa formaram centenas de jovens em artes e cultura, com atuação em bairros como a Cidade Baixa. Em 2024, novas turmas chegaram à Federação e Itapuã, em parceria com o bloco afro Malê Debalê e o Centro Comunitário Mãe Carmen do Gantois. Para 2025, a promessa é de ainda mais expansão: Ribeira, Liberdade e Pau da Lima já estão no radar.

A vice-prefeita e secretária de Cultura e Turismo de Salvador, Ana Paula Matos, destaca a importância do Boca de Brasa como uma política pública cultural de grande impacto social. Para ela, o projeto é a expressão da força das periferias da cidade e representa um dos legados mais valiosos deixados pela gestão de Mário Kertész à frente da prefeitura.

“Arrisco a dizer que o Boca de Brasa é uma das políticas públicas mais importantes do país”, disse. Ana Paula ainda pontua que o projeto se fortalece a cada dia e se expressa em diferentes frentes: “Boca de Brasa itinerante, espaço Boca de Brasa, movimento Boca de Brasa, são algumas das expressões dessa política pública cultural e social que ultrapassa barreiras.”

Foto: Secom/Bruno Concha

Fervilhando cultura

Mas para Guilherme Bellintani, ex-secretário de Municipal Desenvolvimento, Turismo e Cultura, o Boca de Brasa representa muito mais do que uma política pública de sucesso: ele simboliza a importância de reconhecer e potencializar iniciativas já consolidadas, em vez de tentar substituí-las por novas marcas a cada gestão. “O gestor público tem o péssimo hábito de querer criar coisas novas e esquecer o que já foi feito. Eu entendi que era preciso olhar para trás e valorizar projetos com legado”, afirmou Bellintani, em entrevista. Segundo ele, o Boca de Brasa foi o primeiro grande projeto que chamou atenção nesse exercício de revisitar as últimas décadas de política cultural da cidade. “Atualizamos o conceito, ampliamos a atuação para novas áreas da cultura e territórios onde o Boca não chegava. Mas foi fundamental beber dessa fonte riquíssima que nasceu há 40 anos”.

Bellintani também destaca uma dimensão menos visível — mas tão potente quanto — do Boca de Brasa: a formação cultural de jovens em territórios marcados pela desigualdade. Essa é, para ele, uma revolução silenciosa nesse projeto. “Às vezes, o que aparece é só o show, o evento pontual. Mas o que está por trás, o trabalho de formação artística em comunidades de alta vulnerabilidade, é maravilhoso. A cultura chega, ocupa e transforma vidas”, refletiu. A força do Boca de Brasa não está apenas no palco, mas no processo de formação e pertencimento promovido nos bastidores — “pela cultura e para a cultura”, como definiu o ex-secretário municipal.

Poder transformador

Gestor cultural da Fundação Gregório de Mattos, George Vladimir enxerga também no Boca de Brasa um projeto de difusão artística que forma, fortalece e remunera artistas que historicamente ficaram à margem do acesso aos espaços culturais da cidade. Com presença nos bairros e ações formativas adaptadas a cada território, o programa revela talentos e oferece estrutura para que eles possam viver da própria arte. Segundo George, essa descentralização é o que garante que a cultura nasça e floresça onde sempre esteve: nas bordas do mapa, longe dos palcos tradicionais. “A periferia, em termos de cultura, ela não é carente, ela é potente, ela precisa de espaço, de injeção e incentivo”.

O artista ODILLON, de 33 anos, é um dos nomes formados e amadurecidos profissionalmente no Boca de Brasa. Seu projeto artístico solo foi contemplado pelo programa e passou por diversas etapas formativas, como workshops e mentorias com profissionais do setor. Hoje, ele não tem dúvidas que o programa vai além do fazer artístico.