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Dois de Julho que os livros não contam: data baiana vive apagamento sustentado por modelo de educação padronizado
Livros didáticos padronizados e modelo de ensino preocupado apenas com aprovação em vestibular silenciam o Dois de Julho e perpetuam uma visão elitista da Independência do Brasil
Foto: Lucas Moura/Secom
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 04 de julho de 2025
Falar da Independência do Brasil é, para a maior parte dos brasileiros - e até baianos -, recuperar na memória a imagem (inventada pelo artista Pedro Américo, diga-se de passagem) de Dom Pedro em cima de um cavalo às margens do riacho do Ipiranga, gritando “independência ou morte”. É essa a visão “oficial” que se tem sobre o processo de ruptura do Brasil com Portugal, afinal é assim que os livros didáticos de história ensinaram e continuam ensinando as gerações de brasileiros que se formam. Uma visão simplista e elitista que vem, cada vez mais, se sobrepondo e roubando a possibilidade de consciência sobre nossa história, sobretudo diante do domínio de um modelo de educação com livros padronizados e ensino voltado apenas para aprovação em vestibular.
Em busca do reconhecimento nacional
Na véspera do Dois de Julho deste ano, o presidente Lula anunciou um projeto de Lei que foi enviado para o Congresso Nacional para transformar a data em uma celebração nacional: o Dia da Consolidação da Independência do Brasil. O próprio presidente reforçou que o Dois de Julho merece um espaço destacado nos livros didáticos para que as novas gerações compreendam a luta e a resistência do povo baiano na expulsão definitiva dos portugueses em 1823.
“Tem muita importância para a Bahia porque é valorizar a história do povo baiano e muita importância para o país, porque você vai colocar isso nos livros de história do Brasil. Vai colocar no livro didático que você distribui nas escolas, para as crianças e para o ensino médio”, argumentou o presidente.
Foto: PR/Ricardo Stuckert
O falso protagonismo do Ipiranga
O teste é muito simples: basta abrir um dos livros de história de escolas particulares de Salvador e comparar a quantidade de páginas dedicadas ao Sete de Setembro e ao Dois de Julho, buscar por personagens, ilustrações dessas duas datas e até relembrar as comemorações e trabalhos feitos nas escolas baianas em setembro e em julho. A desvantagem é grande para a batalha baiana. Até a nomenclatura dada pelos livros diminuiu a sua importância: “Independência da Bahia”, é assim que eles trazem, quando na verdade se tratava da consolidação da Independência do Brasil, o que aconteceu em território baiano.
Escolas sem legado
A desvalorização desse legado ainda persiste nas escolas. Em grande parte delas, pouco se fala sobre a importância das cidades de Cachoeira, Itaparica e Santo Amaro na libertação brasileira. Apesar de hoje ter um curso tranquilo, o Rio Paraguaçu já foi afluente de muito sangue, diferente do riacho do Ipiranga. Foi por ele que chegaram baianos fugidos da repressão em Salvador, sob o comando de Madeira de Melo — responsável pela morte de Joana Angélica, primeira mártir da Independência.
Pouco de nós e muito deles
Também foi do Rio Paraguaçu que navios portugueses bombardearam, em junho de 1822, as cidades de Cachoeira e São Félix, após uma consulta popular local que proclamou o Príncipe Dom Pedro como Regente do Brasil. Foram três dias de luta e resistência e, ao final, a primeira vitória brasileira na luta pela Independência. O rio e esses eventos, no entanto, nos livros de história e até de geografia ganham, no máximo, notas de rodapé. Talvez os estudantes baianos saibam muito mais sobre o Rio Amazonas e o Tietê do que o Paraguaçu, talvez tenham lido muito mais sobre a Inconfidência Mineira e a Revolução Farroupilha do que a Guerra de Canudos e a Revolta dos Malês.
O que os livros não contam
Poucos sabem também que a cidade de Cachoeira chegou a ser capital não oficial da Bahia, após Salvador ser tomada por portugueses durante as batalhas. O suor dessa resistência que saiu da pele do povo (e não de um príncipe) agora está dedicado à tentativa de valorização desse momento. Para o historiador Rafael Dantas, compreender os movimentos que culminaram neste evento é fundamental para entender a história local, os redesenhos do Brasil no contexto dos anos de 1800 e a construção de um Brasil-nação. “Durante muito tempo, houve um sequestro da independência pelo eixo sudeste, Rio-São Paulo, esquecendo-se do que aconteceu no Nordeste, na Bahia, em Pernambuco e no Pará. Se os baianos não tivessem logrado vitória naquele período, com certeza o Brasil seria diferente hoje”, alega.
Foto: Secom/Bruno Concha
O apagamento é político e empresarial
A invisibilização do Dois de Julho não é um acidente de percurso, mas parte de um projeto maior de centralização de narrativa, que favorece a elite branca e marginaliza figuras essenciais para a Independência do Brasil. Essa omissão reflete-se diretamente nos grandes grupos empresariais de ensino, que, com currículos tradicionais e massificados, ignoram eventos regionais e pouco abordam a contribuição de negros, indígenas, mulheres e personagens populares. Personalidades como Maria Quitéria e Maria Felipa, fundamentais para a luta pela liberdade, continuam invisibilizadas, apesar de seu papel decisivo nas batalhas pela independência.
Com tanta informação descoberta ao longo dos anos, a explicação para a manutenção de uma visão marginalizadora nas escolas está em um modelo de negócios. Os grandes grupos educacionais agora não vendem apenas os livros (substituídos por módulos), mas sim um ‘modelo de Ensino’, uma espécie de pacote fechado para todas escolas do Brasil, com a promessa de aprovações em vestibulares. Os módulos são os mesmos, independentemente da região do aluno, e os professores são adestrados para seguir uma cartilha comprometida apenas com provas. Como o Dois de Julho não cai no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e em outros vestibulares, ele passa quase invisível pelo currículo, sobretudo, da educação básica.
Adestrando para massificar
O termo adestramento é utilizado pelo atual presidente do Sindicato dos Professores no Estado da Bahia (Sinpro), Allyson Mustafa, que, em entrevista ao Metro1, já apontou os professores como vítimas deste sistema, sem ao menos poder de participação na escolha do material didático.
Sérgio Guerra Filho é ex-presidente do Sindicato dos Professores da Bahia (Sinpro-BA) e defende que a própria Base Nacional Curricular Comum acabou cristalizando um currículo focado no eixo sudestino, obscurecendo as histórias locais. Ele observa que, sem as festas e o reconhecimento das figuras populares, como os caboclos e caboclas, pesquisas sobre o Dois de Julho não teriam avançado. “Essas pessoas não sentaram nas cadeiras do poder, mas elas produziram eventos revolucionários”, pontua. “O Sete de Setembro não dá conta da complexidade que foi o processo de independência do Brasil. Nos livros fica parecendo que a independência foi um ato pacífico, como se a nossa história fosse feita só de acordos e de acertos pacíficos”, complementa.
O povo fez a guerra – e faz a festa
Se os livros não ensinam, as ruas mostram. O Dois de Julho, mais do que um simples feriado estadual, se tornou uma das manifestações populares mais importantes da Bahia. Todo ano, as ruas se enchem de cor e vida com o desfile dos caboclos, figura tradicional que representa os heróis anônimos da luta pela independência. A festa é marcada pela presença vibrante da cultura e a celebração de um povo que não se deixa esquecer. Ao mesmo tempo que simboliza a vitória sobre o domínio colonial, a festa reconta, nas ruas, o mesmo ato de resistência que, há mais de 200 anos, garantiu a liberdade do Brasil.
Mesmo sem a devida valorização, até mesmo na própria Bahia, ainda há uma parte da população baiana que segue resistindo, afirmando, na prática, que enquanto o resto do Brasil vê a data como um dia qualquer, aqui ele representa o fim de uma guerra, a vitória de um povo e a afirmação de uma identidade que não se deixa apagar.
Foto: Gov/Thuane Maria
Ensinar Bahia é resistir
Apesar de tantos desafios, há avanços na luta por uma educação que valorize a história do estado. Recentemente, a luta pela Independência da Bahia e seus heróis passaram a ser oficialmente ensinados nas escolas estaduais, com a criação da disciplina "História da Bahia" na rede pública. A medida, homologada pelo Conselho Estadual de Educação em julho de 2024, representa uma conquista importante para corrigir a omissão histórica.
E essa mudança não é isolada. Projetos como o do historiador Matheus Buente, que deu início a uma série de aulas públicas mensais no Armazém do Campo, no Pelourinho, também têm sido essenciais para fortalecer essa resistência. A primeira aula, intitulada "A verdadeira independência da Bahia", foi um exemplo do esforço para recontar a história da luta baiana pela liberdade.
“Nós ainda utilizamos muitos livros didáticos que são produzidos na região sudeste e a narrativa que impera no sudeste é a narrativa do heroísmo de Dom Pedro e do 7 de setembro, que inclusive favorece a região sudeste. Assim, o projeto surge porque eu e outros professores identificamos essa lacuna no ensino. É uma tentativa de fazer circular o conhecimento”, afirma Buente.
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