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Do “X-Tudo” ao corpo parcelado: cirurgias estéticas viram produto em Salvador com anúncios nas redes e no metrô

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Do “X-Tudo” ao corpo parcelado: cirurgias estéticas viram produto em Salvador com anúncios nas redes e no metrô

Pacotes promocionais, parcelamentos e publicidade agressiva desafiam regras médicas e aumentam denúncias no Cremeb

Do “X-Tudo” ao corpo parcelado: cirurgias estéticas viram produto em Salvador com anúncios nas redes e no metrô

Foto: Reprodução/Freepik

Por: Ana Clara Ferraz, Fabiana Lobo e Ismael Encarnação no dia 04 de setembro de 2025 às 10:04

Atualizado: no dia 04 de setembro de 2025 às 10:47

Essa matéria é parte da reportagem especial publicada originalmente no Jornal Metropole em 4 de setembro de 2025

Nas redes sociais e até mesmo nas paredes do metrô de Salvador — pasmem —, cirurgias plásticas são anunciadas como se fossem promoção de fast food: “pra todo mundo”, sem contraindicação, sem consulta, sem pecado. A publicidade não economiza em ofertas milagrosas. E, nas redes, vale tudo para fisgar o cliente. É aí que surgem os “combos promocionais”: lipar aqui, botocar ali, e ainda levar uma “X-Tudo” no pacote, com preço reduzido e exposto nos stories. Se igreja vende céu parcelado e o fast food oferece o hambúrguer com desconto, a clínica de estética tem corpo em suaves prestações. Tudo isso anunciado como se não fosse preciso um laudo médico, exames ou indicação profissional: basta o desejo e um cartão de crédito.

Corpo parcelado em 18x

“Mastopexia sem prótese + lipoescultura por R$ 27.990,00”, “Ninfoplastia por R$ 3.999,00”, “Lipo Média em 18x de R$ 399,00”; esses são alguns dos combos anunciados em perfis de clínicas de Salvador no Instagram, como se ofertasse um combo de pipoca + refrigerante.

O combo, as promoções, o valor e as formas de pagamento escancaram um ambiente mercantilista na saúde, onde o foco está apenas na busca por novos clientes, prática condenada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Professora de Ética na Faculdade de Medicina da Ufba (Universidade Federal da Bahia), Camila Vasconcelos aponta irregularidades nesse tipo de publicidade.

“A maneira como esses combos e pacotes são publicizados não é permitida. O paciente pode procurar um atendimento médico. E, em diálogo, feito um diagnóstico, o médico pode entender, com o paciente, que seria interessante fazer apenas um procedimento, ou dois ou três, sempre analisando a particularização do caso. Então, não dá para o médico já divulgar um combo como se fosse uma perspectiva mercadológica”, analisa a professora.

Não à toa, em uma dessas clínicas soteropolitanas que vendem pacotes, há relatos no Reclame Aqui em que a paciente conta que fez o pagamento do “combo”, mas, durante uma avaliação com o médico responsável, recebeu a informação de que não poderia realizar os três procedimentos adquiridos. Em resposta, a empresa alega que, no momento da contratação, é informado que os procedimentos podem sofrer alteração após avaliação médica.

Infrações médicas

Segundo o Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb), as punições para infrações relacionadas à publicidade médica nas redes sociais cresceram 35% nos últimos três anos. Procurado pela reportagem, o CFM esclareceu que, segundo resolução da entidade, é permitido divulgar preços apenas de consultas, para procedimentos a prática é vedada. O CFM reconhece que médicos podem utilizar as redes sociais como ferramenta de divulgação, porém, a permissão vem acompanhada de uma série de regras éticas.

Entra paciente, sai vítima

Em fevereiro, a corretora de imóveis Verusca Rendall de Carvalho, de 54 anos, foi vítima desse tal X-Tudo. Ela morreu em uma clínica do bairro de Ondina, após mais de 15 horas de cirurgias combinadas. Em 2022, Cláudio Marcelo de Almeida, de 50 anos, faleceu em Feira de Santana durante um implante capilar. Ele sofreu uma intoxicação por anestésico aplicado sem anestesista. Já em Camaçari, a esposa de um ouvinte da Rádio Metropole ganhou dores, deformidades e perdeu a autoestima após uma falsa biomédica aplicar PMMA em seus glúteos.

Físico de acrílico

 PMMA (polimetilmetacrilato), aplicado na esposa do ouvinte da Metropole, foi proibido pelo CFM no início do ano, após fazer muitas vítimas. Ele costuma ser usado como preenchedor estético, mas, em troca, traz riscos de inflamações, necroses, insuficiência renal e deformidades permanentes. O hepatologista Raymundo Paraná é didático ao falar sobre o PMMA: “é uma espécie de acrílico”, um plástico que, entre outras complicações, favorece “a formação de granulomas, que produzem vitamina D, que começa a absorver muito cálcio e jogar nos rins, levando à insuficiência renal”. Mesmo proibido, o produto ainda pode ser encontrado. Os clandestinos também têm entrada livre no templo da vaidade, em especial profissionais desqualificados e não habilitados.

O hepatologista alerta que não são poucos os casos que ultrapassam a estética e atingem órgãos vitais. “O fígado e os rins sofrem com substâncias aplicadas de forma indiscriminada, como hormônios e fórmulas manipuladas sem comprovação científica. Toda semana, duas ou três pessoas adoecem em busca dessa falsa saúde, que nada mais é do que um mercado que lucra com a fragilidade das pessoas”, aponta. Segundo ele, infecções graves, celulite facial e contaminações associadas a essas intervenções costumam exigir internações hospitalares. O perigo maior, destaca Paraná, é que profissionais sem formação médica não têm condições de reconhecer complicações.

Fast food da beleza: Impulsionado por um mercado bilionário e um discurso que vende obsessão como autocuidado, Salvador saltou de 138 para 13 mil clínicas de estética em 20 anos. Leia mais aqui.

É a casa da Mãe Joana: Dessas 13 mil clínicas, nem todas têm ou são dirigidas por médicos. Essa é justamente uma das preocupações do Cremeb. Leia mais sobre profissionais que atuam irregularmente nesse mercado e as sindicâncias abertas neste ano.

Na bandeja, um padrão inalcançável

O balcão da estética não vende apenas cirurgias e procedimentos: vende promessas de pertencimento, autoestima instantânea e corpos moldados num padrão inalcançável. E tem explodido nos últimos anos porque encontra fiéis obcecados pela “beleza” à base de seringa, bisturi e parcelas de 18 vezes sem juros. A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) estima que o Brasil realiza mais de 1,5 milhão de procedimentos estéticos por ano, isso significa lucro para esse mercado.

Para a psicóloga Izabelle Nossa, o fenômeno reflete um contexto cultural em que aparência virou exigência social. Redes como Instagram e TikTok não apenas exibem corpos, mas produzem padrões quase irreais – e agora turbinados por imagens criadas com inteligência artificial. “São modelos silenciosos de comparação, inatingíveis, mas que funcionam como régua de autoestima”, analisa. O resultado é uma corrida invisível: pessoas se sentem obrigadas a correr atrás de um ideal que nunca chega. Nessa lógica, o corpo passa a ser cartão de visitas — associado à juventude, sucesso, credibilidade profissional e até pertencimento social.

Se antes a pressão vinha das capas de revista ou da televisão, hoje ela está em cada deslizar de dedo. “Muitas vezes não são celebridades, mas pessoas comuns que parecem ter uma vida perfeita, um corpo perfeito. E isso mexe com a autoestima de muita gente”, diz. O problema é que a comparação é automática e incessante: basta assistir a um vídeo de beleza para o algoritmo inundar a tela com dezenas de conteúdos semelhantes. “É como se houvesse uma lupa sobre nossas inseguranças. Quanto mais eu vejo, mais sinto que estou ficando para trás.” Para a psicóloga, o vício nas redes aprofunda o ciclo, reforçando a lógica de que a aparência vale mais do que a experiência.

Essa reportagem abre a série Indústria do Vazio, da Metropole, que investiga a explosão na venda de produtos e procedimentos que oferecem autoestima e performance como se fossem mercadorias e soluções definitivas. A próxima matéria trará a febre de alimentos hiperproteicos.