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Rua 'Chique': Plano de transformar região em vitrine de luxo expõe roteiro com rooftop e festa para ricos

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Rua 'Chique': Plano de transformar região em vitrine de luxo expõe roteiro com rooftop e festa para ricos

Entre espaços para eventos de luxo no Elevador Lacerda, planos para transferir a Praça Municipal à iniciativa privada, rooftop construído ao arrepio da lei e a chegada de empreendimentos hoteleiros, restaurantes e lojas de alto padrão, a Rua Chile vai se transformando em um enclave do Centro Histórico feito sob medida exclusiva para ricos e poderosos

Rua 'Chique': Plano de transformar região em vitrine de luxo expõe roteiro com rooftop e festa para ricos

Foto: Metropress/Danilo Puridade

Por: Daniela Gonzalez, Jairo Costa Jr., Laisa Gama e Mariana Bamberg no dia 18 de setembro de 2025 às 10:15

Materia publicada originalmente no Jornal Metropole em 18 de setembro de 2025

Gentrificação é a palavra da moda para traduzir o processo de supervalorização de determinadas áreas urbanas, por meio da chegada de moradores com maior renda, do desembarque de empreendimentos de luxo ou das duas coisas juntas. O resultado é, de modo invariável, o salto no preço de quase tudo, o afastamento dos habitantes mais pobres e a consequente perda de identidade cultural. Em suma, a má e velha elitização. Pois é exatamente isso que vem ocorrendo, agora a passos largos, no coração do Centro Histórico de Salvador. Mais precisamente na Rua Chile, alvo de um plano para transformá-la na "Rua Chique", incluindo suas seculares adjacências, com o apoio e a omissão do Poder Público em suas diferentes esferas.

Do patrimônio ao palco VIP

Três exemplos comprovam a união de esforços para elitizar o trecho mais antigo da Bahia, patrimônio histórico e artístico não só nacional, mas de toda a humanidade, conforme declarou em 1985 a Unesco, braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para ciência, cultura e educação. O primeiro deles é desconhecido pela imensa maioria da população, embora seja ela quem vai bancar parte das festinhas dos ricos em dos principais cartões-postais de Salvador, o Elevador Lacerda. Reformado pelos cofres públicos - ou seja, pelo bolso do contribuinte - ao custo de mais de R$ 14 milhões e entregue pela prefeitura em 25 de fevereiro deste ano, o antigo Elevador Hidráulico da Conceição da Praia, como o equipamento era conhecido antes de ser eternizado com o sobrenome do engenheiro que o projetou, Antônio de Lacerda, passou a abrigar duas áreas para eventos após a requalificação.

Baianidade hype-chic-premium

Ambas, finamente decoradas e com espaço para pocket shows e casamentos de luxo, foram sintetizadas com o nome “Conceito Lacerda” e entregues para uso da empresária, decoradora e ex-apresentadora de TV Andrea Velame, criadora da mostra Casas Conceito. Falaremos do assunto mais adiante. Os dois espaços de requinte no segundo e terceiro pavimentos do Lacerda, revitalizados com a grana suada do cidadão, foram abertos em pleno domingão do feriado de Sete de Setembro, com apresentação da cantora Mãeana para um seleto grupo de convidados. Os vídeos postados nas redes e blogs de colunistas sociais mostram um desfile de taças de bebidas finas nas mãos de pessoas, majoritariamente, com peles brancas e sorrisos mais brancos ainda. Enxugando o texto, a elite política e econômica atraída pelo novo glamour da "Rua Chique".

A ideia, segundo material de divulgação à imprensa do tal Conceito Lacerda, é oferecer duas experiências. No primeiro pavimento, o serviço "Casamento Clássico com Alma Baiana", nada mais que comida, bebida e decoração nessa pegada meio baianidade hype-chic-prime-premium-vip-top. No segundo, a onda é o “Casamento Contemporâneo & Autoral Bahia”, com ideias “criativas e personalizadas”, seja lá o que isso quer dizer de fato. E o melhor: o pacote oferecido inclui a Baía de Todos-os-Santos como cenário em um ângulo exclusivo para poucos.

“O que a gente está vendo que está acontecendo no Centro Histórico, pelo menos nessa parte da Rua Chile, é uma gentrificação, no sentido de serviço que não é para atender o cidadão, mas a uma elite e um turista de alto poder aquisitivo”, diz Neilton Dórea, conselheiro federal do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) na Bahia. A avaliação de Dórea é fácil de ser constatada na realidade. Basta percorrer a Rua Chile para perceber o esvaziamento do comércio popular, a substituição por serviços caros e a dificuldade de circulação.

Foto: metropress/Samanta Leite

O déjà-vu do Pelô

O mesmo roteiro já foi testado no Pelô nos 1990, durante os governos de ACM e Paulo Souto, quando o Centro Histórico virou vitrine para turistas, ao passo que expulsava moradores e apagava modos de vida. O resultado todos conhecem: lojas fechadas, sensação de vazio e um cenário feito só para consumo externo, e não para quem também vive na cidade. “Em vez de resgatar a cidade para uso do cidadão, você começa a criar a imagem de uma cidade cenográfica. Nós já tivemos uma experiência muito negativa no Pelourinho, porque a cidade não pode ser feita só em função de uma cenografia para ser vendida a turistas e a pessoas de alto poder aquisitivo”, completou.

Rooftop com vista para a ilegalidade

Voltemos à Andrea Velame e às Casas Conceito, com o objetivo de ilustrar como a elitização do Centro Histórico inclui ainda o atropelo à lei. Para o evento deste ano, a empresária reformou dois imóveis históricos, o chamado Casario da Misericórdia, e construiu em cima de um deles parte do rooftop (outra palavra da moda na "Rua Chique") de um restaurante a ser operado pelo Grupo Ori e que avança sobre o terraço do prédio de três pavimentos ao lado, o mesmo que abriga uma agência do Bradesco no térreo.

Como denunciou o portal Metro1 no último dia 9, a obra não obteve aval prévio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPhan), que também não se deu ao trabalho de embargar o rooftop como determina a legislação. Ah, vale o lembrete: após o fim da mostra, a pretensão é transformar o espaço no Villa Andrea, hotel boutique com 26 suítes, uma delas presidencial. E tudo isso sob as bênçãos do prefeito, entusiasta e apoiador dos projetos tocados na área por Andrea Velame, a também presidente da Associação da Rua Chique, ops, Chile.

Foto: Metropress/Danilo Puridade

Obra irregular a poucos metros da fiscalização

De acordo com a resposta do Iphan, encaminhada apenas após a publicação da reportagem, os responsáveis pelas Casas Conceito só haviam sido autorizados a realizar reforma simplificada. Basicamente, pintura da fachada externa e manutenção interna do Casario da Misericórdia. Não tiveram o obrigatório aval do órgão, conforme rezam as normas que regem conjuntos tombados em nível federal, para mudar feições originais dos imóveis, como foi feito. Muito menos construir uma cobertura de 500 metros quadrados com piscina e restaurante.

Disse ainda que qualquer outra intervenção será "apurada e analisada para eventual regularização, adequação ou reparação em caso de dano". O Iphan só não explica porque não procedeu o embargo, mesmo com a obra a poucos metros da sede do órgão, situada na Barroquinha.

Privatização com prazo de 30 anos

O terceiro exemplo no processo de elitização do Centro Histórico surgiu no último dia 11, quando veio a público os planos do prefeito Bruno Reis (União Brasil) de entregar a Praça Municipal, a mais antiga do país, com quase 500 anos, à iniciativa privada. Segundo documento, já protocolado e confirmado pela prefeitura, há uma Manifestação de Interesse Privado (MIP) em análise, prevendo a concessão da área tombada por R$ 223 milhões, durante nada menos que 30 anos.

Além do Lacerda, a praça abriga ainda dois marcos de Salvador: os palácios Rio Branco, também entregue a investidores privados, só que pelo governo do estado, e o Thomé de Souza, sede da prefeitura e prestes a ser desmontado por decisão judicial. Um servirá como lobby do hotel que, a princípio, seria pilotado pelo Grupo Rosewood, sediado em Hong Kong, mas que agora o conglomerado liderado pela família chinesa Cheng nega a intenção de colocar sua bandeira no empreendimento.

O outro dará lugar ao futuro rooftop (olha ele aí de novo!) do centro de convenções que a prefeitura planeja construir no espaço ocupado hoje pelo Thomé de Souza. Assim, segundo os planos vazados à imprensa, Praça Municipal, Novo Centro de Convenções e Elevador Lacerda poderão ser transferidos à gestão de particulares mediante concessão, o que nada mais é que um tipo de privatização temporária.

Foto: metropress/Danilo Puridade

Concessão em fase de aquecimento

Em nota, a prefeitura nega qualquer possibilidade de privatizar o Elevador Lacerda e demais ascensores do Centro Histórico, como os planos inclinados Gonçalves e Pilar, talvez por saber o peso simbólico que isso teria. “O fato de haver um estudo em andamento não significa que há decisão tomada”, diz o texto. Mas a própria secretária de Desenvolvimento, Emprego e Renda, Mila Paes, já havia admitido, em entrevista à TV Aratu, que a concessão está em fase preparatória.

Patrimônio virou vitrine

Um dos mais premiados e reconhecidos arquitetos brasileiros, parceiro da célebre Lina Bo Bardi em diversos projetos, incluindo restaurações no Centro Histórico, Marcelo Ferraz afirma que a concessão de espaços públicos para a gestão privada não é uma decisão simples, comum ou usual. Mineiro radicado em São Paulo, Ferraz destaca que esse tipo de operação é extremamente complexo e exige reflexão sobre o papel do Estado na cidade. E o que é pior, ressalta: sem a devida escuta da população, para tomar decisões baseadas no que os moradores pensam.

Para o arquiteto, a ideia de que o Estado é “grande demais” e ocupa tudo é um equívoco: a real questão, segundo Ferraz, é justamente a ausência dele. Essa constatação lança luz sobre a importância do Estado na gestão de áreas históricas e sensíveis, como a Praça Municipal, também chamada de Thomé de Souza, e mostra os riscos de transferir sua administração para interesses privados. “A cidade perde muito, porque o Estado não pode se ausentar de tudo. Só ele é capaz de zelar pela cidade”.

Enquanto isso, avança o processo de elitização do Centro Histórico, em meio às comemorações de endinheirados pela chegada de um conceito mais clean e jet-setter na Rua Chile, através de um processo que começou com a chegada de dois hotéis de altíssimo padrão, como o Fera Palace e o Fasano, passou pela restauração do Palacete Tira-Chapéu, transformado em polo gastronômico, artístico e cultural de luxo, e segue pelos novos rooftops e empreendimentos hoteleiros que aparecem em cards como o suprassumo da sofisticação.