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Graduação que cabe no 3G: EaD dobra número de alunos na Bahia, mas crescimento vem acompanhado de queixas e evasão

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Graduação que cabe no 3G: EaD dobra número de alunos na Bahia, mas crescimento vem acompanhado de queixas e evasão

Crescimento acelerado do Ead no ensino superior esconde fragilidades e estratégias mercadológicas que transformam educação superior em produto

Graduação que cabe no 3G: EaD dobra número de alunos na Bahia, mas crescimento vem acompanhado de queixas e evasão

Foto: Reprodução/Freepik

Por: Ismael Encarnação no dia 02 de outubro de 2025 às 09:47

Atualizado: no dia 02 de outubro de 2025 às 11:12

Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 2 de outubro de 2025

O ensino superior à distância deixou de ser coadjuvante para se tornar aquele personagem que aparece quase tanto quanto o protagonista - uma espécie de Maria de Fátima que rouba o destaque de Raquel em qualquer remake de Vale Tudo. E, a Bahia, que não gosta de ficar de fora de uma muvuca, apontou crescimento significativo. Em cinco anos, o número de matrículas quase dobrou: eram 132 mil em 2019, hoje já são 247 mil, um número que beira um salto de 90%.

Se engana quem pensa que tudo isso é em Salvador. A capital baiana lidera, mas cidades como Feira de Santana, Jequié e Vitória da Conquista também têm destaque nesta corrida à distância. É um crescimento acelerado que tem sido vendido como democratização, mas as estatísticas escondem fissuras importantes.

49% dos estudantes de ensino superior na Bahia estão na modalidade EaD

A virada da pandemia

A pandemia foi o motor do arco narrativo desse coadjuvante. O ensino remoto, aperfeiçoado como solução emergencial para a pandemia, acabou se consolidando como política permanente. Plataformas digitais, antes improvisadas, viraram a base de uma expansão que não parou nem com o retorno das aulas presenciais. Ao contrário, se fortaleceu como lógica empresarial: mais vagas, custos menores, turmas maiores.

Só que a curva de matrículas veio acompanhada de outra um pouco menos celebrada: a das reclamações. No Procon-Ba, as queixas contra cursos EaD cresceram mais de 300% em três anos. Em 2022, eram 157 registros; em 2024, chegaram a 637. Até setembro de deste ano já passam de 400. Os problemas mais comuns envolvem propaganda enganosa, cobranças abusivas e falta de suporte pedagógico. Na prática, muitos alunos encontram barreiras logo após a matrícula – e a promessa de acesso dá lugar à frustração.

O que se vê é um paradoxo. O EaD abriu portas para milhares de estudantes, mas também consolidou um modelo que privilegia escala em vez de qualidade. O aumento das queixas no Procon expõe essa distância entre o discurso de democratização e a realidade dos cursos oferecidos.

Em um mercado educacional cada vez mais dominado por conglomerados privados, a lógica é clara: captar em massa, reduzir custos e ampliar margens de lucro. O que deveria ser formação crítica e cidadã se converte em produto padronizado, embalado em videoaulas e apostilas digitais. Vice-reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba),  Penildon Silva Filho chama atenção justamente para a necessidade de diferenciar a massificação da inclusão do ensino. “Ampliar matrícula é fácil. O difícil é garantir que os estudantes concluam o curso com qualidade”, afirma.

“Não é uma novidade do EAD. A ampla maioria das faculdades privadas já operava sem pesquisa, sem extensão e sem professores dedicados. O que o ensino à distância fez foi ampliar uma dinâmica que o setor privado pratica há décadas”.

Vice-reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba),  Penildon Silva Filho

Foto: Raquel Cunha/Folhapress

Inclusão real ou de vitrine?

De Salvador às cidades do interior, o discurso das instituições privadas é o mesmo: flexibilidade, mensalidades reduzidas e diploma ao alcance de todos. Para populações historicamente excluídas do sistema – trabalhadores que acumulam jornadas, mães solo que não têm com quem deixar os filhos, moradores do interior sem campus por perto e pessoas com deficiência que enfrentam barreiras físicas –, a promessa soa como a realização de um sonho.

E há, de fato, histórias que confirmam esse potencial. Estudantes que jamais conseguiriam se deslocar até a capital para estudar agora acessam conteúdos de graduação de dentro de casa. A superintendente de Ensino a Distância da UFBA, Márcia Rangel, celebra isso. Para ela, a modalidade “democratiza quando garante que quem estava fora do radar universitário finalmente tenha a chance de entrar”.

No entanto, a inclusão nem sempre se sustenta para todos. A evasão permanece alta e denuncia o outro lado da moeda. Para a professora Joséfa Santana, doutora em Difusão do Conhecimento, é muito simples: “sem suporte pedagógico, o EaD vira apenas acesso formal, não inclusão real”.

Diplomas à venda

Estudantes também percebem os efeitos dessa lógica. O estudante de matemática Alan Ramos, que trocou o presencial pelo online, admite a economia, mas critica a superficialidade: “Conheço gente cursando engenharia que não sabe multiplicar. No fim, a graduação acaba virando só um papel”. Sua experiência revela a contradição central: o acesso se amplia, mas a qualidade se fragiliza.

Foto: Reprodução/Freepik

Saúde remota

Para áreas que envolvem cuidado direto com pessoas, como saúde e psicologia, a preocupação é ainda maior. O hepatologista e professor da Ufba Raymundo Paraná não tem dúvidas de que o EAD na saúde responde muito mais a interesses financeiros do que a compromissos pedagógicos. Para ele, a ausência de contato com tutores e a falta de vivências humanísticas tornam impossível formar bons profissionais de medicina ou enfermagem nessa modalidade.

Solução ou fachada?

A regulação do ensino superior a distância ganhou novos contornos neste ano, quando o governo federal publicou o Decreto nº 12.456. O texto foi considerado um divisor de águas: proibiu cursos de saúde e Direito totalmente online e estabeleceu exigências de presencialidade em outras áreas sensíveis, como Farmácia, Odontologia e licenciaturas, que precisam manter parte significativa da carga horária em atividades presenciais. A medida atendeu a pressões de conselhos profissionais e de setores acadêmicos que já denunciavam a precarização da formação.

A criação da categoria semipresencial foi uma das principais novidades. Cursos nesse formato passaram a exigir percentuais mínimos de aulas práticas, laboratórios e estágios, além da realização de provas presenciais. Também foi prevista a figura do mediador pedagógico e a exigência de infraestrutura mínima nos polos, tentando frear a proliferação de polos improvisados que funcionavam apenas como fachada comercial.

Apesar do avanço, os conselhos profissionais, em sua maioria, concordam que a eficácia da nova política dependerá menos da letra do decreto e mais da capacidade do Estado em fiscalizar e coibir abusos. Sem acompanhamento efetivo, há o risco de que a legislação seja apenas um marco simbólico, incapaz de frear práticas de conglomerados privados que pressionam por “flexibilizações” constantes.

O que dizem os conselhos

Cremeb
O Conselho Regional de Medicina da Bahia considera que a prática médica não pode ser transferida para telas ou simuladores. Para o presidente do Conselho, Otávio Marambaia, a formação médica precisa ser presencial, só ela garante a qualidade do profissional. A aprovação de cursos EaD para a área representaria risco direto à saúde pública.

CRP
O Conselho Regional de Psicologia também é taxativo: a profissão exige contato humano, escuta e supervisão presencial. Afinal, a prática da profissão se estrutura em dimensões impossíveis de serem reproduzidas a distância, como a escuta, a observação de comportamentos e a construção de vínculos.

CREA
Na engenharia, a ausência de laboratórios e experimentação real compromete a construção do conhecimento. O Conselho Regional de Engenharia e Agronomia da Bahia (CREA-BA) ressalta que, embora simuladores digitais ajudem, não substituem experiências concretas. A formação em áreas técnicas exige contato físico com materiais, estruturas e processos, além da mediação direta de docentes.

Saúde mental e solidão

A pressão por produtividade e a solidão do ensino à distância têm impactos diretos sobre a saúde mental dos estudantes. A psicóloga Izabelle Nossa avalia que o formato exige um grau elevado de autonomia e disciplina, o que pode gerar sobrecarga e ansiedade. Segundo ela, “o EAD tende a pesar mais pela solidão e pela necessidade de autorregulação do estudante”. Não é o formato em si que adoece, mas a forma como é estruturado, destaca.