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Caso Credcesta expõe sistema que mistura assédio, consignados não autorizados e contratos fictícios
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Caso Credcesta expõe sistema que mistura assédio, consignados não autorizados e contratos fictícios
Credcesta expõe engrenagens de financeiras baseadas em assédio, contratos frágeis e refinanciamentos disfarçados que convertem o salário do trabalhador em receita garantida

Foto: Divulgação
Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 4 de dezembro de 2025
O golpe não está somente no telefonema anônimo nem na mensagem de WhatsApp. Ele também pode ter CNPJ, balcão, publicidade em horário nobre e autorização para operar. Na Bahia e no Brasil, financeiras e bancos que prometem “crédito fácil” estão empurrando juros abusivos, refinanciamentos disfarçados, empréstimos consignados não autorizados e ofertas enganosas que transformam aposentados, servidores e trabalhadores endividados em presas perfeitas.
Consignado sem consentimento
O Credcesta, consignado vinculado ao Banco Master, virou símbolo desse sistema de crédito. E mais: tornou-se sinônimo de abuso financeiro contra servidores públicos da Bahia. Com autorização exclusiva concedida por decretos estaduais em 2018 e 2022, o cartão monopolizou os contratos de emprésPublisher Editora KSZ Diretor Executivo Chico Kertész Projeto Gráfico Marcelo Kertész & Paulo Braga Editor de Arte Paulo Braga Coordenação Mariana Bamberg pagamento de dívidas do Credcesta”, disse o advogado da associação, Jorge Falcão Rios, à coluna Metropolítica. timos consignados da categoria, transformando o que deveria ser uma opção em uma armadilha institucionalizada. Desde então, servidores têm sido alvo de uma avalanche de ligações invasivas e propostas agressivas de crédito, muitas vezes seguidas de descontos em folha sem qualquer autorização formal.
Credcesta na mira
A situação é tão grave que a Associação dos Funcionários Públicos do Estado da Bahia (Afpeb) levou o caso ao Tribunal de Justiça, denunciando fraudes documentadas, taxas de juros que chegam a 100% ao ano e um esquema que mais parece uma máquina de moer salário do que um serviço financeiro. O Credcesta, longe de ser um benefício, virou um pesadelo travestido de conveniência.
“Essas condutas abusivas, incluindo cobranças por compras no cartão que não foram de fato efetuadas pelo beneficiário, endividaram severamente inúmeros funcionários públicos, que viram grande parte de seus vencimentos ser consumida pelo pagamento de dívidas do Credcesta”, disse o advogado da associação, Jorge Falcão Rios, à coluna Metropolítica.
Créditos à força
Marcelo Bastos, ouvinte da Metropole, denunciou o Credcesta: “Recebi indevidamente uma cobrança de quase R$50 referente a seguro proteção do cartão que nunca solicitei e nunca tive. Essa cobrança perdurou por meses e, a cada novo mês, eu entrava em contato com a instituição para retirar a cobrança do meu contracheque, fato que nunca ocorreu. Depois de mais de R$400 pagos e sem resolução, entrei com uma ação judicial, eles não ofereceram proposta de acordo, bem como recorreram de todas as decisões. Finalmente foram sentenciados, onde não cabe mais recurso, porém até agora não recebi o repasse dos valores devidos”.
Marcelo não é o único. Outro ouvinte reclama de ligações abusivas. Diego Bastos relata que a mãe, aposentada, recebe ligações do banco mais de 20 vezes ao dia. “Chato e invasivo”, classificou ele.

Foto: Repodução/Canva Imagem
Exclusividade que virou armadilha
O Banco Master, dono do Credcesta, assumiu em 2019 o controle dos consignados do estado como uma espécie de herança da privatização da Ebal (Empresa Baiana de Alimentos ou simplesmente Cesta do Povo), que centralizava dados e benefícios de trabalhadores do Estado. Essa carteira foi passada para o Master e o modelo de cartão consignado foi posteriormente fortalecido por decretos estaduais que lhe garantiram exclusividade (o que, na prática, significa que o servidor só podia contratar esse consignado, mesmo que preferisse outro banco). Depois divulgação o Credcesta expandiu por meio de associações conveniadas e prefeituras (incluindo a de Salvador), que funcionam como intermediárias obrigatórias para muitos servidores. Esse arranjo reduziu a concorrência e facilitou práticas denunciadas pelos trabalhadores, como assédio comercial, descontos não autorizados em folha, compras e saques desconhecidos e operações de crédito registradas sem consentimento. Foi assim que o Credcesta tornou-se um dos casos mais graves de endividamento compulsório envolvendo servidores públicos na Bahia.
40 é o número de prefeituras baianas que o Credcesta tem exclusividade nos consignados para servidores
Quando o banco decide por você
Apesar das vantagens do Credcesta, ele não é o único no modelo que empurra ao consumidor juros abusivos, empréstimos não autorizados e ofertas enganosas. Uma aposentada de 67 anos, por exemplo, contou que, ao conferir o extrato do benefício, percebeu a cobrança de parcelas de um empréstimo consignado que afirma nunca ter contratado com o C6 Bank. Segundo ela, o desconto começou sem aviso e sem ligação prévia. A cada mês, o valor era debitado automaticamente. “Eu nunca solicitei esse empréstimo. Só quero que devolvam o que tiraram do meu benefício”, disse. De acordo com ela, que pediu anonimato, o débito inesperado comprometeu parte da renda usada para comprar remédios e pagar contas básicas.
Ranking do tormento
Não é exatamente surpresa que clientes reclamem do C6 Bank. A aposentada que descobriu um consignado não solicitado no extrato não está sozinha; ela simplesmente caiu nas mãos do segundo banco mais reclamado do país, segundo o próprio Banco Central. Afinal, conquistar o vice-campeonato nacional em queixas exige dedicação: são reclamações que vão de descontos indevidos a contratos que ninguém lembra de ter assinado. No currículo do banco, há ainda investigações do Ministério Público sobre operações feitas sem autorização do beneficiário. E a ironia é que o C6 nem corre sozinho nessa pista. Ele divide o pódio com um pelotão inteiro de instituições que se especializaram em transformar aposentados e servidores em alvo preferencial: Crefisa, Credcesta, BMG, Pan, Help, Zema Crédito, Olé, Safra Financeira, Facta, Agibank, Banco Daycoval; todos eles colecionam queixas. Um mercado onde o crédito é fácil.
Um banco que cresceu rapidamente no setor de consignados é o Agibank, chegando a 1,57 milhão de empréstimos na carteira atualmente e a R$ 14,8 bilhões repassados pelo INSS desde 2020. Mas o que também cresce rapidamente é a dívida dos que contratam algum serviço com a financeira. A técnica de enfermagem Diana Sena conta que precisou de um empréstimo e que até hoje sofre com os juros “absurdos”. “Hoje eu me arrependo de ter escolhido esse banco, mas ele foi o único que no momento me ofereceu uma boa oferta, infelizmente nem tudo é o que parece”. E não é à toa: no ranking de reclamações do BC, do 3º trimestre deste ano, o Agibank aparece em 8º lugar.
Terreno fértil para abusos
Para Ione Amorim, economista do Idec (Instituto de Defesa de Consumidores), o consignado cresceu apoiado na falsa sensação de segurança. Apesar de ser vendido como crédito de “baixo risco” por causa do desconto direto em folha, o modelo abriu espaço para uma série de distorções. Ela lembra que o produto foi incorporado ao sistema financeiro em 2003 e, desde então, tornou-se uma das maiores linhas de crédito do país, ampliada pela entrada zada de crédito, que já não passa mais por agências físicas, mas por aplicativos, de fintechs, bancos digitais e uma vasta rede de intermediários. “O crédito consignado tem acessibilidade por ter o desconto em folha. E, logicamente, com esse movimento vieram muitas ações abusivas de concessão de crédito sem solicitação”, afirma.
Ione também aponta que o principal gargalo está na incapacidade de fiscalização. O BC, responsável por supervisionar o sistema financeiro, não consegue acompanhar o ritmo da oferta digitalidivulgação ligações, redes sociais e até mensagens automatizadas. Nesse cenário, criminosos e correspondentes mal-intencionados usam engenharia social para simular consentimento, inclusive com o uso indevido de biometria. A vítima, principalmente idosos e moradores de regiões sem Procon, agências ou acesso fácil à informação, muitas vezes nem percebe que está sendo enganada.
INSS na lupa
Diante do aumento das denúncias de empréstimos consignados feitos sem autorização, o INSS afirma, em nota ao Jornal Metropole, ter apertado as regras para impedir novas fraudes. Segundo a autarquia, a atual gestão passou a revisar todos os acordos firmados com instituições financeiras e adotou medidas mais rígidas para coibir abusos.
Como parte desse pente-fino, 19 Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) foram rescindidos por descumprimento de normas, outros 4 estão suspensos, e 4 instituições pediram a saída voluntária do sistema. O INSS informa ainda que 3 acordos expiraram e não foram renovados. A autarquia também firmou novos termos de compromisso, incluindo um que determinou a restituição de mais de R$ 7 milhões cobrados indevidamente de cerca de 100 mil beneficiários.
De acordo com o órgão, qualquer convênio com bancos e financeiras só será mantido caso as regras sejam seguidas à risca, principalmente no que diz respeito à transparência e à proteção dos segurados.O INSS ressalta que “não há tolerância para omissões ou manutenção de acordos diante de suspeitas de irregularidade” e que o objetivo é “assegurar um ambiente de respeito aos direitos do segurado”.
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O caso Agibank
O INSS suspendeu por tempo indeterminado as novas averbações de crédito consignado do Agibank após uma auditoria da CGU revelar irregularidades graves, incluindo milhares de contratos feitos sem consentimento dos beneficiários, 1.192 assinados após a morte dos titulares, alguns até com benefícios já cessados, e um caso de refinanciamento fraudulento que adicionou mais de R$ 17 mil a uma dívida sem que o valor fosse repassado ao segurado. A CGU também identificou um padrão suspeito de operações com juros muito abaixo do mercado, possivelmente para burlar mecanismos de controle. O caso foi enviado à Polícia Federal e à Corregedoria do INSS, e a suspensão vale até a conclusão do processo administrativo.
Credcesta ao deus dará
Enquanto isso, o Credcesta segue solto. Apenas o governo do Paraná bloqueou o lançamento de descontos em folha por meio dos cartões de benefícios Credcesta e Mettacard, ligados ao Banco Master, liquidado pelo Banco Central (BC) em 18 de novembro após a identificação de violações de normas do sistema financeiro. Diante da repercussão do caso e do histórico de operação do Banco Master na Bahia, questionamos o Governo do Estado e a Prefeitura de Salvador sobre eventuais posicionamentos ou medidas locais relacionadas ao episódio. Até o fechamento desta reportagem, nenhuma das gestões enviou resposta.
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