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Longe da lógica “Barra-Ondina”, Salvador se sustenta no improviso, trabalho informal e criatividade de quem ocupa as ruas

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Longe da lógica “Barra-Ondina”, Salvador se sustenta no improviso, trabalho informal e criatividade de quem ocupa as ruas

Ambulantes, mototaxistas e vendedores de rua revelam engrenagem invisível que sustenta Salvador fora do cartão-postal

Longe da lógica “Barra-Ondina”, Salvador se sustenta no improviso, trabalho informal e criatividade de quem ocupa as ruas

Foto: Metropress/Filipe Luiz

Por: Metro1 no dia 18 de dezembro de 2025 às 09:35

Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 18 de dezembro de 2025

Em Salvador, a história não começa na Barra nem termina em Ondina. Aqui não se fala somente da cidade dos comerciais de drone nem da Salvador sempre ensolarada e organizada da publicidade. O foco é outro: o cotidiano de gente comum, em bairros que sustentam a cidade longe dos holofotes.

O tal Complexo de Vira-Lata até tenta (e tentou durante anos) trazer Nova York, Paris, Roma e Londres como modelo. A elite pressiona de um lado. Parte da imprensa do outro. E, como efeito, muitos governantes acabam se rendendo ou simplesmente concordando com o modelo de gestão “Barra-Ondina”. Quem não lembra, por exemplo, do prefeito que garantiu que transformaria Salvador em uma Dubai? Fracassou, felizmente, porque a periferia, onde não se cria a lógica mais vias para automóveis e menos calçadas para pedestres, continua resistindo e sendo a força motriz da cidade.

A realidade de quem faz a cidade

O dia começa com pessoas caminhando entre os carros, barracas ocupando as calçadas e um comércio intenso, sem vitrines padronizadas ou grandes redes. A rua vira extensão da casa, do trabalho e da vida. É nesse improviso diário que Salvador revela sua engrenagem real, movida pela criatividade de quem resolve problemas na prática, quase sempre sem apoio de um planejamento urbano eficiente. 

É o caso de Antônio Leal, catador de material reciclável, de 42 anos, morador do bairro da Saramandaia. Ele conta que há mais de três meses trabalha com reciclagem, após deixar um emprego com carteira assinada. “Tudo: garrafa, ferro, metal, alumínio, cobre. Vou juntando o material no quintal de casa. Quando dá uma quantidade boa, eu vendo”. Antônio passa o dia inteiro caminhando pelas ruas da capital, deve conhecer a cidade mais do que qualquer intelectual ou gestor público. “É correria de segunda a domingo. Mas também tiro um tempo para ir à igreja. Ontem mesmo eu fui à reunião. Minha caminhada é essa”, conta.

Entre um bairro e outro

A cidade se move no improviso. Entre congestionamentos, ruas em obras e trajetos que mudam conforme o horário, Salvador exige leitura rápida do espaço e adaptação constante. Para além dos mapas e aplicativos, há quem conheça a capital por experiência diária, sentindo no corpo o ritmo das ruas e o humor do trânsito.

Quem conhece Salvador por dentro é o mototaxista. Josemar Andrade cruza a cidade costurando caminhos, desviando de buracos, obras e do tempo apertado de quem sobe na garupa. Já viu de tudo: gente que chora de alívio ao chegar no trabalho, gente que muda de ideia no meio do trajeto ao lembrar que esqueceu o documento em casa. No capacete, carrega histórias. No guidão, a cidade. “Em Salvador, o trânsito muda de humor. Tem dia que você sai de casa com sol e chega com chuva”, diz.

Quando o benefício falha

Manoel tem 72 anos e carrega no ofício a precisão de quem passou a vida ajustando o tempo dos outros. Relojoeiro há 52 anos, ele é parte de um trabalho que não nasce da escolha, mas da necessidade de seguir em movimento quando a aposentadoria não dá conta do básico.

Antes, trabalhava em um ponto fixo no Pernambués Center. Com a aposentadoria, precisou dar baixa no espaço e encontrou no próprio carro uma alternativa para continuar trabalhando, sem o custo da locação. “Porque o benefício não dá. A aposentadoria, a pensão não são suficientes. Então a gente tem que complementar, procurar outras formas de sobreviver. Trabalhar para comer”, resume.

Ao longo dos anos, Manoel já passou por bairros como Boa Vista de São Caetano e hoje segue fazendo do carro o seu local de trabalho. “É normal. Tem dia que as pessoas ajudam, tem dia que não. Mas a vida continua. Já estou aqui há alguns anos”, diz, com a serenidade de quem aprendeu a medir o tempo também pela resistência.

Longe da Dubai prometida

Tem gente que insiste em vender Salvador como uma cidade moderninha e organizada, quase uma “Dubai baiana”, como chegou a prever o ex-prefeito João Henrique: uma capital de arranha-céus, tecnológica e reluzente. Mas quem sustenta, de fato, o dia a dia da cidade ainda é a criatividade de quem ocupa as ruas. Um cotidiano que a elite frequentemente tenta apagar, embora sejam justamente essas pessoas, as vielas, as ocupações e as resistências que fazem Salvador ser o que ela é.

Não se trata de uma apologia à informalidade, ao improviso e à desorganização; até porque elas surgem menos como escolha e mais como resposta à ausência de políticas públicas de longo prazo. Quando o emprego formal falha ou a aposentadoria não cobre o básico, o povo coloca a criatividade e a persistência para jogo e cria alternativas para seguir vivendo. Essa lógica também atravessa o lazer e a cultura. Muitas expressões hoje celebradas nasceram nas comunidades, como o Samba de São Lázaro, que surgiu da rua antes de ganhar reconhecimento e espaço no circuito oficial.

Estoque da vida real

Luiz tem 53 anos e carrega mais de três décadas de experiência no comércio de rua. Ao longo desse tempo, foi se deslocando conforme a cidade mudava: começou na Barroquinha, passou pela Baixa dos Sapateiros, voltou para a Barroquinha e, mais recentemente, encontrou em Pernambués um novo ponto para trabalhar.

Hoje, vende acessórios para celular e um pouco de tudo que possa garantir o movimento: redes, camisas de times como Bahia, Vitória, Corinthians e Flamengo, toalhas temáticas, pano de prato, pano de chão, tapetes, garrafas térmicas, sombrinhas e guarda-chuvas. “Um pouco de cada coisa”, resume. A lógica é simples e prática. “A gente vai tentando garantir o pão de cada dia.” Luiz explica que o estoque se adapta à demanda. Quando os clientes pedem um produto específico, ele avalia se vale o investimento. “Quando vejo que dá para ganhar um trocado, vou lá, compro duas ou três peças. Se vender bem, eu aumento”. 

Salvador é feita de gente que não aparece no folder turístico nem no discurso oficial. É cidade construída por autônomos, trabalhadores informais, motoristas de aplicativo, garis, ambulantes, catadores, mototaxistas, vendedores de rua e tantos outros que mantêm a engrenagem girando todos os dias. São pessoas reais, com rotinas duras e criativas, que ocupam a rua não por escolha estética, mas por necessidade. Que votam, mas não dificilmente se enxergam naqueles que dizem representá-los. 

Ainda assim, é nesse trabalho invisível, persistente e cotidiano fora dos gabinetes que Salvador se sustenta, longe do cartão-postal, mas viva.

É a Bahia…

“O Rio é o Brasil, São Paulo é o mundo, e a Bahia é a Bahia.” A frase do comunicador e poeta baiano James Martins está escrita em um dos muros da Escadaria do Passo, no Santo Antônio Além do Carmo, em frente à Igreja do Santíssimo Sacramento da Rua do Passo. Quem sobe ou desce aqueles degraus inevitavelmente cruza com a sentença que, mais do que slogan e hit nas redes sociais, virou uma tentativa bem-humorada e certeira de explicar o que não se deixa explicar facilmente.

Para James, a frase parte de imagens já consagradas no imaginário nacional. O Rio de Janeiro, sobretudo após o Estado Novo, passou a representar o Brasil para os próprios brasileiros, associado ao samba, ao calçadão de Copacabana e a uma ideia exportável de brasilidade. São Paulo, por sua vez, aparece como a cidade cosmopolita, capitalista e internacional, onde todas as nacionalidades convivem e reproduzem pedaços de suas tradições, formando uma espécie de miniatura do mundo. Um lugar que parece menos identificado com as raízes brasileiras e mais conectado à lógica global.

Já a Bahia, segundo ele, é um território de deslocamento total. Um lugar que só se explica nele mesmo, que não admite comparação e cuja grandeza está justamente em ser o que é. Bahia é a Bahia. E, pedindo licença ao poeta, Salvador é Salvador. Um espaço que precisa ser vivido, apalpado, experienciado no cotidiano. Isso tem relação direta com a própria história do Brasil: foi aqui que o país começou, na primeira Praça dos Três Poderes, hoje esvaziada com a iminente saída da sede do Executivo e do Legislativo Municipal. 

Salvador segue até hoje como um lugar desafiador, que tenta ser estrangeiro, que tem dificuldade de reconhecer sua história e sua força. Mas elas seguem vivas nas ruas, na periferia.