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A morte do guru e a canonização

A morte do guru e a canonização

A morte do mentor intelectual da nova direita brasileira, seja lá o que essas duas coisas signifiquem, foi parar no Diário Oficial da União. Virou documento oficial nos anais da Presidência da República, com a assinatura do presidente, que decretou luto oficial

A morte do guru e a canonização

Foto: Reprodução Jornal da Metropole

Por: Malu Fontes no dia 27 de janeiro de 2022 às 12:00

Na mesma semana, Jair Bolsobaro perdeu a mãe e o guru. Na morte da mãe, fez mais do mesmo. Saiu do enterro e foi a uma casa lotérica, fazer uma fezinha e mostrar para seus apoiadores o quanto é macho. Não chora ou desaba nem diante da mãe morta. Alguns dias depois, morre o guru da guerra cultural do bolsonarismo, Olavo de Carvalho, aos 74 anos, nos Estados Unidos. Aí o presidente, se não sentiu o golpe, fingiu muito bem. 

A morte do mentor intelectual da nova direita brasileira, seja lá o que essas duas coisas signifiquem, foi parar no Diário Oficial da União. Virou documento oficial nos anais da Presidência da República, com a assinatura do presidente, que decretou luto oficial. Lamentos e luto são coisas raras no manual de comportamento de Bolsonaro. Afinal, ele não é coveiro e todos nós vamos mesmo morrer um dia. E daí? Durante o mandato atual, morrerem inúmeras pessoas com vasta contribuição para o país e o presidente ignorou. Nem uma mísera nota, embora tenha se manifestado quando morreram apoiadores seus do mundo artístico e de comportamento cafajeste, como agressores de mulheres.

O presidente fez um tuíte todo pesaroso. Seus filhos ficaram indóceis com o que consideraram deboche com a morte de Olavo por parte de algumas autoridades da República, como os senadores Randolfe Rodrigues e Renan Calheiros. Por desatenção ou picardia de algum estagiário da equipe de social mídia, um tuíte de um perfil de humor sabendo ok num check list com a morte de Olavo foi curtido pelo perfil oficial da Presidência da Câmara dos Deputados. Os filhos do presidente reclamaram, o gabinete se desculpou e a curtida foi apagada. 

Sim, a cultura dos memes é engraçada mas não tem nada de fofa e parece um reduto criado para extravasar todo o humor trágico e violento que já não se pode fazer em outras configurações por que todo mundo tem um canhão de cancelamento apontado para si. O Big Brother, quem diria, está todo comportadíssimo nessa edição, dizem. E já chove reclamação, pelo comportamento correto demais, domesticado demais, em relação à edição anterior, um paredão com uma artilharia de cancelamento. A morte de Olavo liberou a perversão e a comemoração do anti-bolsonarismo. E raciocinar sob hipótese não é pecado. Para as próximas eleições, Olavo é mais útil morto do que vivo, para Bolsonaro. Irritado, de língua solta e virulento, só se referia ao presidente nos últimos meses para descosturá-lo, por ter sido, ele, Olavo, escanteado pelas raposas do centrão. Morto, será um mito para suas viúvas ideológicas, mas mudo. Vivo, era um vinho derramado na mesa da santa ceia. 

Despachante de canonização 

Mas, convenhamos. Em que mundo um sujeito que parecia ter uma cloaca no lugar da boca para ofender seus alvos com palavrões e escatologias iria morrer sob a impunidade das manadas digitais? O velho era terraplanista, astrólogo e filósofo porque decidiu que se autodeclararia assim e pronto. Até o fim foi um negacionista da covid e anti-vacina, ao ponto de não vacinar-se. Olavo foi diagnosticado com covid uma semana antes da data da morte e sua filha, rompida com o pai, reitera que foi covid o que o matou, embora seu médico negue. Não o diagnóstico, mas a relação disso com a morte. Ok, deve ter sido só coincidência. Um homem de 74 anos, acabado, de saúde frágil, acamado, fumante, sedentário, não vacinado, contrai COVID-19, morre, mas não foi o vírus. 

Quem acha que é exagero dizer que parte do bolsonarismo tem comportamento de seita deve achar que é normal um psiquiatra bolsonarista estar nas redes numa campanha, a sério, para ele, pedindo relatos de milagres e de conversão ao catolicismo atribuídos a Olavo de Carvalho. Sim, isso mesmo: querem transformar o guru da guerra cultural do bolsonarismo em santo, perfilá-lo no imaginário católico brasileiro ao lado de uma Santa Dulce dos Pobres. Insanidades ou vigarices à parte, é revelador encontrar na lista de aplausos à essa iniciativa do psiquiatra coach e despachante de processo de canonização no Instagram um monte de nomes que a gente conhece. Menos de seis graus nos separam do fanatismo olavista e terraplanista.