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O golden na Gol e a cuidadora de Tio Paulo

O golden na Gol e a cuidadora de Tio Paulo

Os comentários de matérias e redes sociais são um oceano de gente conduzindo qualquer tema para o pântano do confronto

O golden na Gol e a cuidadora de Tio Paulo

Foto: Reprodução

Por: Malu Fontes no dia 25 de abril de 2024 às 00:26

O ‘whataboutism’, uma estratégia de quem não tem argumento em um debate e quer calar interpondo um ponto de vista aparentemente oposto, mas que não passa de uma desonestidade intelectual, não tem uma boa tradução em língua portuguesa. Vamos a um exemplo de como ele funciona. Numa conversa sobre política, alguém fala das joias que Jair e Michelle Bolsonaro receberam de presente quando ele era presidente da República e ela, primeira-dama. Joias que depois venderam, numa ação ilegal, nos Estados Unidos. Venderam e depois recompraram, tudo devidamente documentado e hoje nos autos do processo pelo qual respondem.

Numa conversa honesta, quem defendesse a razoabilidade do gesto do casal quanto ao episódio das joias apresentaria um argumento que fragilizasse a acusação de crime contra os dois. Poderia defendê-los, talvez, contra-argumentando que a família Bolsonaro foi ingênua, que considerou o presente das joias como algo pessoal e não institucional, daí terem decidido pela venda, ou coisa do tipo. Mas um interlocutor que não tem argumentos e quer vencer o debate, calar o interlocutor e transformar uma conversa sobre esse assunto em um conflito faz o quê? Foge do núcleo do debate e introduz a prisão do presidente Lula na conversa, como se, ao citar o fato, desmoralizasse a tese da desonestidade de Bolsonaro e automaticamente estabelecesse uma hierarquia moral entre Bolsonaro, os bolsonaristas e Lula e o PT.

Você fica aí falando nessas joias, que eles ganharam de presente, mas não fala de Lula, dos processos do PT”, etc, etc. Essa é uma estratégia comum na abordagem desse assunto no rastro da polarização. O método consiste em desmoralizar moralmente quem fala sobre coisas que os ‘whataboutistas’ não querem ouvir. A aposta em calar o interlocutor acusando-o de defender pontos de vista moralmente inferiores. Assim funciona. Os comentários de matérias de jornais e, principalmente, de redes sociais são um oceano de gente assim, conduzindo qualquer tema para o pântano do confronto, sem passar pelo argumento.

Um cachorro, Joca, um golden retriever, de João Fantazzini, morre em uma viagem de avião, por uma sucessão de erros e por negligência de uma das principais companhias aéreas do país, a Gol. Uma mulher pobre e preta, Érika Souza Vieira Nunes, é presa no Rio de Janeiro, por apresentar um cadáver, o de Paulo Roberto Braga, agora chamado nacionalmente de “Tio Paulo”, aos funcionários de uma agência do banco Itaú para fazer um empréstimo de R$ 17 mil. Um homem rico, Fernando Sastre, 25 anos, dirigindo de madrugada um Porsche a mais de 150 km/h, colide contra a traseira do veículo de Ornaldo da Silva Viana, 52 anos, motorista de aplicativo. Ornaldo morre, a Polícia Militar de São Paulo autoriza Fernando a sair do local do acidente sem sequer submetê-lo a um bafômetro, inviabilizando provas para que fosse preso.

Assessores e novelão do BBB

São três cenas, três tragédias, envolvendo pessoas, circunstâncias e contextos absolutamente distintos. Mas experimentem ler comentários sobre qualquer um dos fatos e vejam o quanto ninguém está disposto ou é capaz de ver nos três casos qualquer elemento sobre a convergência que pode haver entre as vítimas dos três episódios, como o sofrimento, a tragédia, a tristeza inerente à condição humana. Quem ousar se comover com os eventos citados corre o risco de ler ou ouvir coisas assim: ‘como vocês podem estar comovidos com um cachorro morto enquanto tem tanta gente agora morrendo de fome?’. A comoção com o cachorro não anula a comoção com os indigentes das esquinas.

‘Como ter pena dessa mulher desumana se ela não teve pena do tio e o levou morto a um banco por dinheiro’? Por que você está protestando contra o dono do Porsche solto e não é capaz de escrever um A sobre a prisão da cuidadora Érica’? ‘Ah, esse Tio Paulo, boa coisa não era, pois em seu enterro nenhum dos vários irmãos apareceram’. E numa enésima prova de que não há conversa possível e que o ‘whataboutism’ precisa de uma tradução urgente, pois já se tornou o método mais poderoso de disputar a razão, veio o novelão pós-BBB, agora roteirizado por uma nova leva de diretores e confinados, todos agora presos no feed. Enquanto o maniqueísmo não decide quem é vilão, vítima ou só ingênuo na trama Davi x Mani, uma sugestão aos inscritos dos realities de amanhã: advirtam os seus sobre os assessores que estarão na porta da saída com uma caixinha pronta de planos para suas vidas. Precaução talvez ajude.