
A história, a Ucrânia, Almodóvar
Enquanto uns derrubam estátuas, outros esmagam identidades, como faz agora o czar do século XXI, Vladimir Putin, cuja meta é fazer de novo a Rússia que se desfez em 2019

Foto: Reprodução
Conhecer a história, ler os livros certos, ou os errados, não impedirá o mundo de seguir seu fluxo, atropelando os bons e os maus, sem distinção. Mas permitirá, aqui e ali, a alguns, encontrar poesia, ironia e um certo sabor do vislumbre do óbvio, embora isso não sirva para nada, como é da natureza da arte. Para que serve a arte? Para contar histórias de ninar gente grande e sem carecer de letras, sem se importar com o tempo nem com fronteiras que separam pessoas, países ou circunstâncias, sejam elas as línguas, as ideologias ou o arame farpado.
Entre um filme em preto e branco, como A Fita Branca, que traduz a eclosão do ovo da serpente que gera a primeira guerra mundial, as manchetes dando conta de uma guerra em algum lugar que nos parece perto do fim do mundo e a explosão de cores do último filme de Pedro Almodóvar, Mães Paralelas, que lembra aos espanhóis a ditadura que os pós-millenials de lá já não lembram, continuamos espremidos, como sempre foi e será na história, entre ignorância e arrogância.
A espiral da história avança, sempre, mas passando pelos mesmos lugares. A Ana, de Almodóvar, a adolescente que ignora a história, nunca ouviu falar em Janis Joplin, desconhece ditaduras e seus corpos em covas rasas que assombram gerações, engravida numa sessão de violência sexual coletiva porque quase amigos lhe chantageiam com imagens dela bêbada fazendo sexo com um garoto segundo ela inofensivo. As feministas de 2022 dirão sem dúvida que nenhum homem é inofensivo e talvez estejam certas. Mas quem é? As mulheres são? Ou Ana faria sexo com todos, ou suas imagens íntimas iriam para as redes sociais. Fez com todos. E pariu uma filha que, em tese, poderia ser de todos, mas na prática da vida, de nenhum.
Entre Ana, a adolescente da segunda década do século XXI, e a mãe morta de Janis, a personagem de Penélope Cruz, nomeada em homenagem a Janis Joplin, as diferenças são quais, senão do século e da natureza do torpor? Ana engravida embriagada e empurrada contra o muro da viralização da privacidade nas redes e isso lhe joga para outro mundo. A mãe de Janis engravida chapada de drogas, aquelas da geração beat, da contracultura, do sexo e do amor livres, e morre precocemente, de overdose.
A história não cala a boca
Entre A Fita Branca, Mães Paralelas, o teatro diplomático entre a Ucrânia e a Rússia e o tsunami de certezas de barro que dão sono, a história segue seu fluxo, indiferente às nossas versões de agora. Todo mundo quer reescrever não só o presente, mas o passado também, ora apagando, ora mantendo de pé o que já ruiu. O sentido de revisionismo histórico é polissêmico. Enquanto uns derrubam estátuas, outros esmagam identidades, como faz agora o czar do século XXI, Vladimir Putin, cuja meta é fazer de novo a Rússia que se desfez em 2019.
Como a história não tem fim e recomeça todos os dias a tecer-se, de novo, com os fiapos do passado, fazer o quê, senão assistir nossas sombras ilusórias se movimentando na caverna de Platão? Os livros, a arte, o cinema, contarão no futuro o que as Anas de Almodóvar de agora ignoram tão naturalmente, de Janis Joplin aos mortos e desaparecidos das ditaduras. O resto é Eduardo Galeano, antes dos créditos finais de Mães Paralelas: “No hay historia muda. Por mucho que la quemen, por mucho que la rompan, por mucho que la mientan, la historia humana se niega a callarse la boca". Por mais que a gente minta agora, a história se recusa a calar a boca.
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