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Sexta-feira, 22 de março de 2024

O bicho, os delegados e Marielle

Delegados são presos no Rio de Janeiro acusados de associação e proteção de quadrilhas da chamada máfia dos caça-níqueis

O bicho, os delegados e Marielle

Foto: Reprodução

Por: Malu Fontes no dia 12 de maio de 2022 às 09:41

A prisão, na terça-feira, de dois delegados no Rio de Janeiro, acusados de associação e proteção à máfia dos caça-níqueis, comandada por bicheiros, diz muito sobre o Brasil e suas deformações, tão profundas quanto insanáveis. No armário da delegada licenciada Adriana Belém, cujo salário bruto mensal é de cerca de 8 mil reais, a Operação Calígula encontrou quase dois milhões de reais, em espécie, distribuídos em uma mala e sacolas de marcas de luxo. Para tirar o dinheiro do apartamento, em pilhas de notas de 50 e de 100, foi preciso usar um carrinho de supermercado. 

Na casa de outro delegado preso, Marcos Cipriano, 22 anos na função, além dos bens supérfluos e dos sinais de riqueza incompatíveis com o salário do acusado, a polícia achou documentos que também traduzem em muito o país e o nível de contaminação das instituições pela criminalidade, pela corrupção e pela impossibilidade de recuperação. Estavam na casa do preso cópias de todas as decisões judiciais e dos documentos do Ministério Público que embasavam a mesma operação policial que achou o material. Ou seja, Polícia e Justiça estão envolvidas até os núcleos de suas memórias digitais de delegacias e tribunais, informando os criminosos investigados de tudo o que vai lhes acontecer. Profissionais a serviço do Estado são olheiros de luxo do crime organizado para mantê-lo informado de todos os passos jurídicos e policiais. Deve ter sido a sorte, da Polícia, ou a certeza de impunidade, do preso, o que fez Cipriano ser achado em casa, sem fugir. Saber da operação, ele sabia.

 E a partir daqui a história de Cipriano e Adriana só melhora e só mergulha ainda mais no mar de associação entre milícia, polícia, crime organizado, tráfico de drogas, de influência e força do jogo do bicho do Rio de Janeiro, essa instituição tão carioca e resistente quanto o Carnaval, as escolas de Samba e a mistura entre capos do crime, futebol e gente rica e famosa. Cipriano e Adriana, segundo a polícia, enriqueciam oferecendo proteção, informações privilegiadas e intocabilidade policial em investigações sobre tudo o que fosse do interesse de Rogério Andrade, patrono da Mocidade Independente, capo dos mais importante do jogo do bicho e da máfia dos caça-níqueis e o mais importante: herdeiro do bicheiro morto mor, Castor de Andrade, o lendário, imortalizado num ótimo documentário, Doutor Castor. 

O faz-tudo e capitão do mato do bicheiro era ninguém menos que o sargento da Polícia Militar, Ronnie Lessa, hoje preso sob a acusação de ser o executor, em 2018, da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Lessa atuava há anos como segurança de Rogério e em 2010 foi vítima de um atentado cujo alvo era o bicheiro. Uma bomba explodiu no carro e arrancou uma perna do policial. Seis meses depois, os autores do atentado repetiram o crime: uma bomba colocada embaixo do carro de Rogério explodiu, na Barra da Tijuca. De novo, Rogério saiu vivo. A bomba matou seu filho, de 17 anos, que dirigia o carro. 

A Polícia do Rio tenta desconversar com respostas sinuosas e evita o assunto, mas não nega investigações que apontam para a possibilidade de o mandante do assassinato de Marielle ser Rogério de Andrade, e de Lessa ter sido muito bem recompensado financeiramente pelo patrão, pela execução. Já se sabe, inclusive, que, logo após a morte da vereadora, Lessa ‘ganhou’ do bicheiro um imóvel nada modesto e sede de um bingo para operar, na Barra da Tijuca. Há conversas nas quais o policial diz ter recebido autonomia total de Rogério para expandir ao máximo os negócios da quadrilha por bairros de determinadas áreas da cidade. 

INVERTEBRADOS MORAIS 

Um Google rápido dá bem a noção do quão inseparáveis são, no Rio, as trajetórias de bicheiros, traficantes, famosos, artistas, jogadores de futebol e o Carnaval. Em festas nos camarotes da Sapucaí ou privadas, em aniversários da família, Rogério faz questão de dar demonstrações públicas de poder e autoridade sobre quem contrata, seja musa do axé ou do funk. Recentemente, no aniversário de um ano do filho, teria pago o dobro do cachê a uma estrela do funk só por marra, após ela ter dito que na data não o poderia, por já ter um compromisso. E pelo dobro, pode? O compromisso anterior desaconteceu e a musa foi cantar para o bebê, por 200 mil reais. O filho mais velho, DJ e amigo de 10 em cada 11 celebridades RJ/SP, agora também está foragido, como o pai.

Isso é no Rio. Mas, no resto do país, essa mistura entre ordem e crime, essas fronteiras borradas entre autoridades e contraventores, famosos e traficantes, é tudo mais do mesmo. Mudam os roteiros, as personagens, as posições no tabuleiro. E quem vive longe do lustre sabe: nunca as coisas estiveram tão por um fio, em muitas décadas, como agora. Nenhum modelo de combate ao tráfico e à criminalidade deu certo nesse país, e uma das causas dessa falência é a tese empedrada de que os criminosos estão sempre no mesmo lugar nas geografias da cidade. Não é bem assim. Quantas Adrianas e quantos Ciprianos estão agora, e não no lugar de delegados, com seus armários em condomínios de luxo abarrotados de cédulas e joias saídas do mesmo fluxo que fazem policiais morrerem e matarem numa guerra que, nesse modelo de combate, não vai acabar nunca? 

Se foi mesmo Rogério de Andrade que mandou matar Marielle, mesmo que seja, não terá sido. Foi essa estrutura crônica de Brasil: criminosos e autoridades juntos numa aliança sólida, só possível pelo endosso de agentes do estado, seja da polícia, da justiça, da política, dos amigos dos bem nascidos, ricos e famosos. Parece ficção, mas é só cinismo, de todo mundo. De perto, todos fingem costume ou espanto, o que for mais conveniente para o interlocutor da vez. Somos todos invertebrados morais.