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Sexta-feira, 19 de abril de 2024

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A volta da roda dos enjeitados

A volta da roda dos enjeitados

O lobby contra o aborto acaba de restaurar o que no passado, em língua portuguesa, chamava-se roda dos enjeitados, ou dos rejeitados

A volta da roda dos enjeitados

Foto: Reprodução

Por: Malu Fontes no dia 12 de agosto de 2022 às 11:47

O movimento antiaborto dos Estados Unidos está anunciando ao mundo uma reinvenção que parece saída do Conto da Aia, o livro da canadense Margaret Atwood que deu origem à série Handmaid’s Tale. O lobby contra o aborto acaba de restaurar o que no passado, em língua portuguesa, chamava-se roda dos enjeitados, ou dos rejeitados. Nas igrejas e nos conventos portugueses, a engrenagem é achada com muita frequência, mas óbvio que como objeto da história. Trata-se de uma roda plana de madeira, como o tampo de uma mesa redonda, mais para pequena do que para média, um desses círculos de mesa gourmet onde só o centro gira para que todos se sirvam sem esforço, para pegar o que quiser. Metade da roda ficava voltada para fora da igreja ou do convento. A outra metade do círculo, uma vez girada, dava para dentro. 

Quem está fora e deposita algo na roda não é visto por quem está dentro. E vice-versa. A função do mecanismo era receber bebês recém-nascidos cujas mães, por alguma razão, não poderiam criá-los. As versões e lendas são muitas. Seriam maioria as ditas moças de boa família que engravidavam e pariam fora do casamento, tornavam-se impuras e tinham o filho levado para uma roda de rejeitados imediatamente após o parto. Quem se encarregava da função de depositar a criança era o próprio avô ou uma criada da casa. Dependia das posses da família. Deixados anonimamente e sempre altas horas da noite, os órfãos tinham os destinos definidos pelas ordens religiosas, dos mais trágicos, como tornar-se serviçais submetidos a maus-tratos, aos contos de fadas, como serem adotados por mulheres nobres inférteis que lhes davam um futuro de riquezas. 

Fala-se ainda que, nos conventos, eram as próprias freiras as principais depositárias de bebês, seus próprios filhos, concebidos em pecado nos porões dos espaços sagrados. Uma coisa parece pouco provável: que os bebês deixados nas rodas dos enjeitados fossem filhos de mulheres negras escravizadas. Afinal, uma criança nascida de uma mulher que era propriedade de alguém era considerada multiplicação gratuita de mercadoria e de mão de obra. Tinha valor financeiro e de força de trabalho. 

Baby box

Agora, em 2022, os Estados Unidos atualizaram a roda dos enjeitados. Para dissuadir do aborto as mulheres que engravidam e não querem ter o filho, ONGs que se autointitulam pró-vida estão fazendo campanhas e espalhando, por diversos pontos das cidades dos estados que já proíbem legalmente o aborto, caixas onde os bebês recém-nascidos podem ser deixados de forma anônima para adoção. De prédios de bombeiros a prédios comerciais, as caixas estão se multiplicando. O lado bom é que não há razões para que mães abandonem crianças em latas de lixo ou em calçadas desprotegidas do frio. Do lado de dentro das caixas há, inclusive, berços aquecidos. 

Em entrevista recente, Margaret Atwood disse que, embora tenha imaginado literariamente a Gilead, nunca imaginou que a Suprema Corte dos Estados Unidos a criassem como a criaram, na prática. As caixas que vêm se espalhando por cidades do país comprovam a perspectiva da escritora. O império econômico global, que até ontem se orgulhava de ser o berço da democracia moderna do mundo vem se transformando numa teocracia com direito ao resgate das rodas dos enjeitados, agora chamadas de Safe Haven Baby Box. Em bom português, caixa refúgio seguro para bebês. O movimento do refúgio seguro é vinculado ao ativismo antiaborto e é voltado a convencer mulheres com gravidez indesejada a não abortarem. As caixas permitem a entrega anônima do recém-nascido para adoção. Era isso o que também garantiam as rodas dos enjeitados.