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Cuidado com o buraco

Cuidado com o buraco

No metrô mais antigo do mundo, o de Londres, uma voz masculina, desde 1969, é ouvida em todas as estações, repetindo isso o tempo todo: ‘mind the gap’. Em tradução livre, é mais ou menos isto: cuidado com o fosso entre a porta do vagão e os trilhos do metrô

Cuidado com o buraco

Foto: Reprodução

Por: Malu Fontes no dia 10 de novembro de 2022 às 08:27

Mind the gap. No metrô mais antigo do mundo, o de Londres, uma voz masculina, desde 1969, é ouvida em todas as estações, repetindo isso o tempo todo: ‘mind the gap’. Em tradução livre, é mais ou menos isto: cuidado com o fosso entre a porta do vagão e os trilhos do metrô. Em tradução mais livre ainda, é um pedido para que as pessoas não se descuidem enquanto esperam a vez de embarcar e, sem querer, não acabem caindo acidentalmente da plataforma rumo ao vão, com consequências que todo mundo sabe quais. Em baianês, seria bem aceitável que traduzíssemos o alerta por “cuidado para não cair no buraco”. Cada cidade do mundo o traduziu a seu modo. 

No filme de terror japonês “Suicide Club”, de 2002, traduzido no Brasil como “O Pacto”, o terror está justamente numa onda de precipitações voluntárias de meninas adolescentes sobre os trilhos em estações do metrô de Tóquio. É ficção de terror, mas inspirada em uma onda de casos reais e semelhantes, ocorridos com jovens estudantes japoneses entre o fim da década de 90 e o início dos anos 2000.

Em abril deste ano, o jornal mais influente do mundo, o New York Times, lançou um podcast em 8 episódios também sobre buracos e quedas. Sobre os buracos na deepweb, no submundo obscuro habitado pelos fomentadores e consumidores de teorias conspiratórias nos Estados Unidos, cuja influência foi crucial para a vitória de Donald Trump e para o surto coletivo que culminou com a invasão do Capitólio por gente fanática fantasiada de viking e que deixou pessoas mortas por tiros.

“Rabbit hole”, toca do coelho, em inglês, foi produzido e realizado por Kevin Roose, 37 anos, autor de livros relacionados a efeito manada e a comportamento religioso versus posição ideológica e mudança de comportamento e colunista de tecnologia do jornal. O podcast é um primor. O ouvinte é puxado pela mão para o universo dos buracos onde vivem pessoas viciadas em fóruns bizarros de internet, listas de distribuição de conteúdo que ignoram os fatos e customizam o mundo aos seus desejos, sociais e políticos. Tem de tudo lá: o rapaz fracassado viciado em vídeos íntimos e de violência no YouTube, o racismo, o antissemitismo, como os algoritmos alimentam, com ração conspiratória, o fanatismo político, o negacionismo mostra como a extrema direita alternativa, a alt-riht, se espraiou pela web.

Armas na mão, reza na chuva e abraço em caminhão

Saindo do buraco dos outros e olhando pro buraco nacional, nunca foi tão simples definir onde estamos: ao redor do buraco que milhões, de brasileiros estão cavando, tudo é beira, e não se  tem no Brasil de novembro de 2022 a voz gravada do locutor do metrô de Londres (já morto), advertindo sobre o risco de queda e esmagamento nos trilhos. 

As cenas do ex-deputado federal Roberto Jefferson atirando granadas e 50 tiros de fuzis contra policiais federais, a deputada Carla Zambelli perseguindo armada um rapaz nas ruas de São Paulo e acuando quem mais estivesse em uma lanchonete, pessoas se atirando abraçadas em para-choques de caminhões, quebrando pé ao chutar veículos na rua e a atriz Cassia Kis encharcada de água da chuva, rezando, ajoelhada, segurando um rosário e uma Nossa Senhora Aparecida são coisa muito mais bizarra que as descritas no buraco do coelho dos Estados Unidos. Esperemos o delírio decantar, os quartéis ignorarem a histeria e o judiciário fazer sua parte. As sequelas sociais já estão por aí, com escolas precisando expulsar crianças e adolescentes por ameaçar outras crianças de morte, por violência coletiva e por racismo. Cuidado: ao redor desse buraco que se abriu no Brasil, tudo é beira. Mind the gap.