
Eduardo Bolsonaro e Zé das Medalhas
Filmado todo trabalhado no lazer num estádio do Qatar, Eduardo Bolsonaro precisava, e rápido, de alguma justificativa para estar a se divertir do outro lado do mundo enquanto milhares de beatos salus têm tomado sol e chuva pernoitando em quartéis

Foto: Reprodução
Roque Santeiro, a telenovela de maior audiência da TV brasileira, continua mantendo vínculos com a realidade nacional quase 40 anos depois. Uma das obras-primas da nossa teledramaturgia, escrita por Dias Gomes e estrelada por Lima Duarte e Regina Duarte, a novela está disponível no catálogo do canal Viva e ostenta um recorde imbatível: índices médios de audiência de quase 80% dos televisores de todo o país e nada menos que 100% dos televisores ligados no último capítulo.
No ar entre 1985 e 1986, Roque Santeiro inscreveu no imaginário nacional personagens antológicos, como a viúva Porcina, interpretada por Regina Duarte, Sinhozinho Malta, o coronel corno interpretado por Lima Duarte, e o próprio Roque Santeiro, personagem de José Wilker, então o galã clássico do horário nobre da TV brasileira. Como tudo de Dias Gomes, a novela era um assombro de humor e criatividade e, para isso, personagens secundárias faziam toda a diferença. E aqui entram duas delas: o empresário mercador da fé alheia, Zé das Medalhas, e o doido da praça da matriz da novela, o Beato Salu.
Interpretadas respectivamente por Armando Bogus e Nelson Dantas, ambos atores hoje mortos, como também José Wilker, as personagens são caricaturas às quais podemos recorrer para ilustrar mil e uma cenas do anedotário econômico e político nacional. Antes da articulação entre os dois e o presente do país, vale lembrar uma curiosidade e tanto envolvendo o elenco e o cenário do bolsonarismo de agora: Regina Duarte, bolsonarista de primeira linha, e Cassia Kis, a musa dos apelos golpistas na chuva, estavam juntas no elenco da novela. Regina como Porcina, a viúva fake, ‘a que foi sem nunca ter sido’, e Cássia como a ingênua e reprimida Lulu, a mulher oprimida de Zé das Medalhas.
A personagem de Cássia jurava ter visto o falso santo, Roque Santeiro, e acreditava que ele lhe havia salvado da morte e curado, por milagre. Qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência, como reiteravam os créditos que subiam na tela da TV, no passado, a cada fim de capítulo das novelas. O marido, um carrasco machão que a mantinha praticamente em cativeiro, era um comerciante que explorava o mito de Roque Santeiro vendendo medalhas, camisetas, amuletos e esculturas e sonha em ficar milionário apostando na crença do falso santo. Diante do desmoronamento do mito do falso santo, Zé das Medalhas deprime, se encastela em casa, surta e morre delirante afogado nas medalhas que perdem o sentido. De novo, coincidências da ficção: mito, falso profeta, maluco da praça, depressão, surto, fim de linha.
O pen drive de Eduardo
Já o Beato Salu era o pai do falso santo milagreiro, Roque. Passou mais de 30 capítulos da novela em coma, e, quando sai do estado vegetativo, apresenta transtornos mentais severos. Passa o dia na praça de Asa Branca, a cidadezinha onde se desen volve a trama, anunciando o fim do mundo e repetindo um bordão: “mais forte são os poderes de Deus”. Por cá, temos o “Conhecerás a verdade e a verdade vos libertará”. E “Deus acima de tudo. Deus acima de todos”. No Planalto Central, nas igrejas da campanha e, agora, nos quartéis
Em quase dezembro de 2022, o país acorda com um vídeo de novela protagonizado pelo filho do presidente da República, no Qatar, em plena Copa do Mundo, enfiando as mãos numa bolsita e chacoalhando um monte de pen drives. Filmado todo trabalhado no lazer num estádio do Qatar, Eduardo Bolsonaro precisava, e rápido, de alguma justificativa para estar a se divertir do outro lado do mundo enquanto milhares de beatos salus têm tomado sol e chuva pernoitando em quartéis, rezando, exigindo que Deus, os militares e, na dúvida, até os ETs intercedam logo e confirmem o mito milagreiro a permanecer no cargo de presidente mesmo tendo sido derrotado. E Eduardo confessou a razão de estar na Copa do Qatar. Não foi lá para se divertir. Foi para distribuir pen drives contendo filmes, em inglês, à comunidade diplomática internacional, denunciando o fim do mundo no Brasil. Teria ido apenas pedir socorro, no Qatar, para que os poderosos das outras nações impeçam o mundo de se acabar no Brasil. Ou seja, para que impeçam Lula de tomar posse. A mão de Eduardo na bolsita cheia de pen drives é a melhor emulação que o Brasil de 2022 poderia fazer ao Zé das Medalhas de 1986. Mas os salus da praça do quartel parecem levar a sério.
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