
Um ato de coragem vale quanto de uma vida?
Mas, afinal, quem era Dona Joana/ Dona Vitória, o que a tornou uma personagem tão relevante na imprensa e o que virou a sua vida de cabeça para baixo?

Foto: Reprodução
Há uma semana, morria, em Salvador, Dona Joana Zeferino da Paz, 97 anos, quase 20 anos depois de perder o próprio nome e parte da vida como a tinha, até 2005. Dona Joana, que entre 2005 e fevereiro de 2023 viveu em diferentes cidades e estados do Brasil e até no exterior como Dona Vitória da Paz, teve seu obituário publicado em manchetes de primeira página de alguns dos mais importantes jornais e sites do país. Foi também objeto de uma reportagem especial do Fantástico, no último domingo, e tema de um podcast especial do grupo Globo, com citações em vários outros.
Antes de morrer, sempre como Vitória da Paz, Dona Joana foi tema de livro, do gênero livro-reportagem “Dona Vitória da Paz”, do jornalista Fabio Gusmão. Em 2005, foi tema de um caderno especial no jornal carioca Extra, intitulado “Janela Indiscreta”. E vai estrear agora, em março, na GloboPlay, um filme sobre ela, protagonizado por Fernanda Montenegro. E aqui, um asterisco. Mesmo que estejamos falando de Fernanda Montenegro, o fato de Dona Joana/Dona Vitória ser interpretada por uma atriz branca deve ser problematizado. Ela era uma mulher negra.
Mas, afinal, quem era Dona Joana/ Dona Vitória, o que a tornou uma personagem tão relevante na imprensa e o que virou a sua vida de cabeça para baixo, forçando-a a mudar de endereço e de cidades sucessivas vezes, a viver sob sigilo e a mudar até de nome? Até 2005, era mais uma das senhorinhas aposentadas que habitam o universo de idosos do bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro. Comprar um pequeno apartamento no bairro era a concretização de um sonho acalentado por uma vida inteira, destino das economias de uma vida inteira. A ação dos traficantes na Ladeira dos Tabajaras, endereço ao lado da sua janela, começou a destruir, todas as noites, o sonho realizado de Dona Joana. Então, em um dia em 2005, ela resolveu tomar uma providência.
Uma câmera na mão e uma vida desfeita
Quando a telefonia celular e os smartphones ainda engatinhavam em recursos de câmera e vídeo, Dona Joana foi a uma loja dessas varejistas de eletrodomésticos e, cansada de indignar-se sozinha e em silêncio dentro de casa, financiou uma câmera de vídeo VHS em 12 parcelas e começou a gravar a ação dos traficantes a partir da visão que tinha da janela de seu apartamento. Com oito vídeos, procurou a polícia e a imprensa. Da primeira, ouviu que naquele material não continha nenhum elemento suficiente para prender ninguém. Com a veiculação na imprensa e a repercussão, a coisa mudaria de estatuto. Mudou. Mais de 30 pessoas foram presas, e, naquele contexto da Ladeira dos Tabajaras, o esquema do tráfico caiu. Mas a que preço para a vida de Dona Joana?
A casa do grupo de traficantes em ação caiu, mas o lar de Dona Joana também acabou. Para a divulgação das imagens, para a polícia agir e para a imprensa divulgar o material, era preciso que ela mudasse de casa, de cidade, de nome, de vida e ingressasse no programa de proteção a testemunhas, que pressupõe tudo isso. Depois de muitas mudanças e da saída do programa, agora com a sua morte, uma pergunta que deveria ser importante, pouco tem sido feita: valeu a pena, para uma mulher, então aos 80 anos, ser arrancada de sua rotina e sua realidade, deixar sua própria casa, para, no final das contas, morrer com as honras de corajosa e heroína, por ter denunciado um grupo de traficantes? A pergunta não é moral nem exercício de retórica. É por pragmatismo. Os 30 presos, à época, por conta da indignação de Dona Joana, pouco significaram diante da expansão e fortalecimento vistos hoje no tráfico do Rio. A coragem e o heroísmo dela valeram, mesmo, todo o sacrifício decorrente que lhe foi imposto?
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