
Lacre, lucro e uma realidade pra cada um
Esvazia-se o acontecimento do seu sentido e de sua importância e a aposta se faz é no produto secundário: : a dimensão de potencial viral contido no registro espetacular do fato

Foto: Reprodução
A realidade, esse fenômeno que acontece fora de nosso cérebro, parece estar com os dias contados. Inclusive nos veículos de imprensa. O que começou como o oximoro fake news, logo tornado expressão gasta, usada para tudo e desprovida do sentido que inicialmente tinha agora é algo parecido com o direito de cada um ter direito a uma realidade própria, pouco importando o que escancaram ou dizem os fatos. Danem-se os fatos. Cada um customiza os seus e fica valendo a interpretação endógena, pouco importando se esta é radicalmente oposta ao sentido do que aconteceu. Os fatos andam tão, mas tão sem importância que mesmo quando são fenômenos da natureza e registrados com testemunhos, imagens, documentos oficiais, até a imprensa, ou aquilo feito por quem se diz agente dela, ignora-os e vai cuidar de anunciar o efeito virtual, digital, lacrativo e mais lucrativo, sem jogo de palavras. Lacre é lucro, clique é dinheiro.
Um ciclone numa praia do Rio de Janeiro, Itacoatiara, cujos registros em imagens mostram ondas atingindo grupos de pessoas na faixa de areia, foi anunciado desta forma em um perfil de um jornal mineiro: “Ciclone bomba: vídeo do fenômeno que atingiu praia do Rio viraliza nas redes”. De saída, o coitado do leitor que saiba o que está lendo já fica confuso. Se considerarmos que um ciclone é um fenômeno que um veículo de imprensa chama de ‘bomba’ sem que o público saiba o que é ‘bombogenesis’ mais estranho é supor que se trata do uso do neoverbo bombar. Contém ironia: na chamadinha do post, a palavra bomba exerce qual função gramatical? É um substantivo composto? Um adjetivo? Um verbo? É com ou sem hífen? Quem souber não ganha um seguidor, uma curtida nem um post salvo. Fora da função da língua, parece que é só aberração mesmo é cada um escolhe a sua.
Duas vaginas, aceleração da música e machadadas
Desproblematizando a bomba e lendo a chamada toda, a coisa piora. O que se tem, no final das contas, é o noticiamento não de um evento da natureza raro e noticiável, mas do efeito do vídeo sobre ele nas redes sociais. Que importância têm os fatos, os acontecimentos, a realidade? Importante mesmo é se a imagem das coisas bomba e viraliza. Esvazia-se o acontecimento do seu sentido e de sua importância e a aposta se faz é no produto secundário: a dimensão de potencial viral contido no registro espetacular do fato, imediatamente embalado e reembalado para superdimensionar a vitalização noticiada.
Ninguém se importa em saber coisa alguma sobre o ciclone. Basta saber quantos milhões de views um vídeo do fenômeno gerou. E assim, tudo vai sendo embalado em formato de irrealidade. O presidente da República e a primeira-dama ilustrados com o logo e as cores da Barbie para divulgar um filme. Cantores e cantoras, gravadoras e plataformas anunciando em tom celebratório a nova invenção dos últimos dias: a speed up songs. Em tradução livre: está todo mundo com pressa, e o timing das coisas é determinado pelas big techs. Depois do acelerador de áudios e de o acelerador de vídeos chegar ao streaming, as plataformas digitais de música já convenceram a indústria fonográfica de que é preciso acelerar as músicas para que caibam no tempo adequado dos posts. O ritmo TikTok chegou à melodia e já é manchete de caderno de cultura: “Cada um no seu corre”.
Sim, as redes sociais não são veículos de imprensa. Mas os veículos de imprensa estão nas redes e não foram estas que se adaptaram a aqueles. Deu-se o inverso. Abre-se um perfil de veículo e está lá: “Atriz pornô tem duas vaginas e guarda uma para o marido”. Realidade ou ficção, quem se importa, se do outro lado da rua tem um homem numa creche matando bebês a machadadas?
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