
Antônio Fagundes e o monossílabo
A peça de humor gravada por Antônio Fagundes mostrou que tudo foi transformado em eu aplaudo ou eu odeio

Foto: Reprodução
A lógica do imediatismo e do cancelamento sumário incrustada em meio mundo deu esta semana mais uma lição do quanto muita gente boa passa automaticamente e sem se dar conta a marchar com fúria na fila das manadas digitais. O ator Antônio Fagundes gravou um esquete para o humorístico Porta dos Fundos. A intenção do Porta e do ator era produzir uma peça de humor no contexto do Novembro Azul trolando o tabu dos homens de temer o exame de próstata por associar o toque médico ao universo da homossexualidade.
Como era um quadro humorístico, o incentivo para que homens não temam o toque retal e, assim, não se tornem estatísticas de diagnósticos ou mortes com câncer de próstata, Fagundes cita o monossílabo anal sem rodeios e todas as frases que habitam a conversa de homens na faixa etária mais próxima do risco. Segundos depois, o vídeo humorístico estava em todos portais de notícias, todo mundo mandado link para todo mundo, a maioria sem citar que era humor, que era do Porta dos Fundos. Ao contrário. A ênfase era dada à associação da fala de Fagundes à vulgaridade, a expressões toscas e à escatologia, meio que expressando horror pelo fato de um ator respeitado aceitar cachê para se referir de forma vulgar a tema tão nobre da saúde.
Não era uma peça do ministério ou de qualquer secretaria estadual ou municipal de saúde do país. Não era campanha de associação de classe de medicina ou de saúde voltada ao combate ao câncer de próstata, o mais incidente entre os homens e o segundo que mais mata, só perdendo para o câncer de pulmão. Era HUMOR. Uma peça humorística para contribuir com a perda do preconceito masculino que impede exame, tratamento precoce e morte. No entanto, nas universidades, professores renomados tomaram os alunos como plateia para abordagens moralistas de “uma campanha de saúde pública” vergonhosa, imoral, lacrativa, equivocada, vulgar e trocentos adjetivos na mesma linha.
Fundão da 5ª série
Em sala de aula, houve professores ideologizando e literalmente partidarizando a performance de Antônio Fagundes na peça, atribuindo-a - e citando um suposto cachê milionário, claro -, ao atual governo, evocando as qualidades morais superiores do anterior e as inferiores deste. Que a audiência senso comum faça uma confusão dessa natureza, tudo certo. Mas gente com formação e capacidade intelectual, técnica e profissional que não identifica diferença entre um esquete de humor e uma campanha institucional de saúde pública é trágico, não cômico.
Não achar graça na peça, por associar doença a conversa escatológica anal de macho, é direito de todo mundo. Fazer uma peça trolando conversa de macho que tem mais medo de dedo de médico tocando a próstata do que do câncer que pode matá-lo também é. A peça é exemplo de como as redes misturam tudo e transformam tudo em eu aplaudo ou eu odeio, sem reflexão, sem contexto, sem nada. Um ator respeitado, ao falar nas redes e no diminutivo em liberar o monossílabo assombra meio mundo apenas porque o algoritmo e o fundão da quinta série que nos habita diluem a moldura do enquadramento do humor que o Porta dos Fundos dá à peça quando a concebeu para o seu público. Fora dali, o público se confunde, e até professores das mais tradicionais escolas de medicina ficam alarmados e pedem providências à moral e aos bons costumes. Se você duvida do quanto as redes imbecilizam, aí está um bom exemplo. Calma, é só humor. E humor salva.
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