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Golpismo tardio

O que eu ficava pensando o tempo todo era naquelas ruazinhas e becos do bairro da Liberdade onde cresci e onde Bob Marley é muito mais que um pop ou superstar
Foto: Reprodução
Assisti “Bob Marley: One Love”, filme de Reinaldo Marcus Green com Kingsley Ben-Adir como o rei do reggae e Lashana Lynch encarnando maravilhosamente Rita Marley. Gostei bastante, especialmente dos números musicais que, muitas vezes, são e soam inconvincentes em produções desse tipo. Aqui, ao contrário, era como ver o próprio Bob em ação, com seus passos, suas caretas, sua aura mitológica. O ator realmente incorporou o cantor e compositor. Focando no período de gravação do disco “Exodus” e do show pela paz promovido por Marley numa Jamaica em pé de guerra, o filme consegue mostrar o artista em sua grandeza de verdadeira lenda. Mas, o que eu ficava pensando o tempo todo era naquelas ruazinhas e becos do bairro da Liberdade onde cresci e onde Bob Marley é muito mais que um pop ou superstar, onde Bob Marley é um amigo nosso, um irmão, muito chegado, íntimo e amado. Afinal, não foi do nada que Nego Tenga tirou os seguintes versos: “Quando Bob Marley morreu, foi aquele chororô na Vila Rosenval”.
A relação do jamaicano com a Bahia é realmente especial. Seu rastafarianismo está não apenas nos dreadlocks que nos acostumamos a ver e cultivar, mas também em letras como a de “Denúncia” (Lazinho e Tita Lopes), do Olodum: “Hailê Selassiê é rastafari-ê, / Reinou na Etiópia, / Virou filosofia, / A Jamaica acolhia. // E o reggae surgia / Impondo outra forma negra de lutar. / Olodum da Bahia / Com a força do canto vem denunciar”. A solidariedade afro-diaspórica fez daquele artista mestiço (pai branco, mãe negra), de língua inglesa, que conquistou o mundo via Londres e vende mais camisetas que Che Guevara, uma espécie de tocador de tambor da vizinhança. Resumindo, um neguinho. “Tem, tem, tem, tem dois neguinhos / Tem, tem, tem, tem dois neguinhos // Um morava na Jamaica / Outro mora no Brasil / Um se chamava Bob Marley / Outro é Gilberto Gil”, lembram a música de Celso Bahia? E aquela de Rubi Confete?: “Hei, Bob Marley! / Hei, Jimmy Cliff! / Veio da Jamaica / Direto pra Bahia”.
O fato é que não dá pra chegar numa quadra do Malê Debalê, do Muzenza ou do Olodum sem encontrar Bob Marley, copo de cerveja na mão, ganja na outra, sorrindo sua camaradagem e dando conselhos pra galera. Lá no Beco de Jaci, no Curuzu, ele joga bola dias de quarta e sábado, e tira espaço ninguém sabe de onde pra fazer cada gol de letra! Quando Beyoncé veio a Salvador no fim do ano passado, ela sabia o que estava buscando. A Bahia tem mananciais de negritude que a África mesma já perdeu e os Esteites nunca tiveram. Incluindo um Bob Marley próprio, às vezes macumbeiro, às vezes evangélico, sempre camarada. Jah Live! Saravá!
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