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Cartas para quem partiu

Cartas para quem partiu

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas, professora da Facom/UFBA e colaboradora da Rádio Metrópole

Cartas para quem partiu

Foto: Angeluci Figueiredo

Por: Malu Fontes no dia 24 de dezembro de 2020 às 08:35

Os livros nos conquistam pela força, pela apreensão de tempos e de relatos históricos, pela beleza, pela ampliação dos sentidos, por trazer cá para dentro outras vidas que não as nossas, por nos permitir experiências que não caberiam em nossa única vida. Nessa época do ano, quem gosta de livros é frequentemente abordado com duas perguntas: o que de melhor você leu neste ano? Quero dar um livro de presente a uma pessoa com tais e quais características. O que você sugere? Mas, em tempos de crise aguda das livrarias físicas, quem, a essa altura de dezembro, quer presentear com livros e não aderiu à compra on-line tem chances quase absolutas de se frustrar ou de ter como opção os piores títulos. 

Entre livreiros, amazonificação é o nome dado à peste que os ameaça. E quem gosta de livros, ama livrarias. O cheiro, as prateleiras, a possibilidade de descobertas, perder-se nas páginas que ficam lá. É inquestionável que o poder da gigante on-line esmaga a competitividade das lojas físicas. Mas se elas existem, aquelas que sobrevivem, o que explica a escolha por ofertar tanta coisa ruim associada à indiferença por um acervo menos óbvio? As duas grandes redes de livrarias com lojas em Salvador enfrentam nacionalmente processos de recuperação judicial, e uma delas já fechou as unidades na Bahia. Recentemente, no lugar de uma das lojas fechadas, uma outra rede abriu uma nova livraria. 

É natural supor que quem abre uma livraria física pretenda viver da venda de livros e entenda o movimento de diversificação e segmentação do setor, do mercado, do público. Que compreenda minimamente o perfil das editoras, conheça os clássicos e suas novas edições, e saiba da existência de novos talentos e novos títulos. Enfim, que demonstre algum esforço ou investimento para conquistar clientes novos e que os faça sair da loja com algo que não seja frustração e mãos vazias. 

Na semana do Natal, uma família que gosta de livros e de presenteá-los entrou na loja novinha de Salvador com uma lista de 10 títulos, quase todos novos. Alguns premiados, outros lançamentos presentes em tudo o quanto é lista de mais vendidos e todos bombados no reino da amazonificação. Dos livros anotados no celular, a única coisa encontrada foi uma vendedora sem graça repetindo 10 vezes que a loja não tinha aquele título. Não havia acabado ou coisa parecida. Nunca houvera ali. Iria anotar, para pedir, essas coisas. Com o preço sempre muito acima do on-line, ainda insistem para o cliente encomendar. O argumento é um primor: chega no máximo em 10 dias, para pegar na loja. Se por uns 20 ou 30 reais a menos já não fosse possível ter o livro em casa em dois dias, enviado por Jeff Bezos... Sim, o mundo é hostil, mas também é imbecil. 

GATILHOS - Recomendar livros, portanto, é coisa cada vez mais para quem vai comprá-los on-line. E também para os muito íntimos. Há leitores novinhos e nem tanto que já não perguntam se o livro x ou y é bom ou ruim, mas se tem ou não tem gatilhos. Se vai causar sofrimento, tristeza, melancolia ou um desses sentimentos que fazem de nós humanos. Recomendar uma obra passou a ser risco de semanas depois se ver no lugar de SAC involuntário da editora ou do autor, lidando com queixas sobre a adesão ou a falta de ruptura da obra com questões de gênero, de decolonização, eurocentrismo etc. A leitura, confrontada com tamanha fragilidade humana, assemelha-se à prescrição de medicamentos sem autorização técnica.

Li e continuo lendo coisas incríveis nessa via-crúcis que é 2020, mas recomendaria pouquíssima coisa e a muito poucos, pela exigência que as leituras cobram nesse mundo agora cheio de selos e de gatilhos. Em meio a isso, achei a coisa mais bonita de dezembro uma carta, dessas publicadas em rede social e que nuca será lida por quem a inspirou. Uma filha única, que não conseguiu se despedir da mãe, distantes entre São Paulo e a Chapada Diamantina. Um gatilho orgânico, ancorado em 4 gerações de mulheres, uma história de amor e de tramas de famílias reais que não cabem nas novelas que têm o Leblon como cenário e que foi interrompida pelo vírus. Se pudesse recomendar boa literatura, Manu, seria a sentida, vivida e escrita por você, se isso fosse possível e se soprasse a sua dor. Se pudesse, queria ler as suas cartas, escritas para quem partiu.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas, professora da Facom/UFBA e colaboradora da Rádio Metrópole