Faça parte do canal da Metropole no WhatsApp >>

Domingo, 16 de junho de 2024

Home

/

Artigos

/

Turismo de calamidade e os recebidos da enchente

Turismo de calamidade e os recebidos da enchente

A maioria das pessoas já está mais alfabetizada em como comportar-se em cenários de tragédia, mas o grotesco ainda consegue um lugar

Turismo de calamidade e os recebidos da enchente

Foto: Reprodução

Por: Malu Fontes no dia 23 de maio de 2024 às 00:56

Nana Gouvêa feelings. Ou desfile nos destroços. Assim ficou famoso e eternizado nas redes sociais de então, tudo localizável hoje a um clique na web, o comportamento da ex-modelo brasileira Nana Gouvêa. Após a devastação causada pelo furacão Sandy, em outubro de 2012, na Costa Leste dos Estados Unidos, a moça resolveu dar uns rolês por regiões de Nova York, em busca de engajamento com os seguidores brasileiros. Eram imagens bizarras, dessas que concretizam a consciência da gente sobre o quanto a falta de noção desconhece limites.

Por suas poses inusitadas em cenários catastróficos, Nana foi imortalizada na web em imagens e memes, usando botas, roupas quentinhas, justas e sensuais, tendo como cenas de fundo guindastes, carros esmagados sob árvores gigantes, galhos serrados obstruindo vias, trechos de asfalto transformados em crateras cavadas pela água etc. Um show grotesco. Doze anos depois, a maioria das pessoas já está mais alfabetizada em como comportar-se em cenários de tragédia, mas o grotesco ainda consegue um lugar nas janelas e corre mundo nas redes.

Nas últimas semanas, a pedagogia do constrangimento chegou a ser invocada por algumas das autoridades dos municípios atingidos pelo alagamento trágico no Rio Grande do Sul. Lia-se aqui e ali pessoas sérias preocupadas com algo que, no contexto de calamidade sob o qual vive o estado, nem deveria ser objeto de preocupação e perda de tempo de pessoas minimamente racionais. Autoridades pediam que ninguém, ninguém, que estivesse em qualquer ponto não alagado e colapsado, por favor, não saísse de casa e se deslocasse para as áreas afetadas para praticar o que se chama de ‘turismo de calamidade’.

Moleton fashion na água podre

Sim, isso existe: turismo de calamidade. E todo mudo conhece a face mais comum da modalidade. Quando há acidentes de carro em rodovias, tragédias mais pontuais num determinado lugar da cidade e todo mundo para o carro ou se desloca até a cena para conferir pessoalmente o que aconteceu e, principalmente, para fotografar, filmar e, claro, postar. Houve muito lacre, muita gente anunciando pix pessoal para receber recursos, mas vamos lá e aceitemos que todo mundo agiu assim ou assado por vontade de ajudar, falta de avaliação crítica de como fazer de forma mais institucional ou coisa parecida. Mas surfe nos moldes do turismo de calamidade viu-se pouco.

Scroll para cima, para baixo, eis que surge no feed um post no Instagram que talvez possa ser enquadrado como uma narrativa vanguardista nos moldes que foram os lacres de Nana, no Sandy, em Nova York. Trata-se de um carrossel. Na primeira imagem, o choque é garantido, exceto para quem normaliza tudo o que é conteúdo em forma de posts. “#Recebidos da enchente” está lá, definindo o espírito do conteúdo. O objetivo é mostrar os looks incríveis, com imagens, de roupas, itens fashion que os tiktokers pegaram entre as peças doadas. No carrossel há uma menina que anuncia um make-up com os produtos incríveis que ela pegou nos donativos.

Recebidos, para quem não sabe, são os brindes, presentes, que os influenciadores recebem das marcas para anunciá-los para os seus seguidores. A ideia do post é no espírito ‘veja que coisas incríveis os jovens gaúchos descolaram entre as coisas doadas’, com a seguinte legenda concluída após esse altruísmo: ‘a moda pode ser inclusão até mesmo nesses casos’. O Nana Feelings foi atualizado com sucesso. E pelo tom dos comentários, estranho é quem vê nisso algo bizarro. Tudo seria não mais que um modo incrível de procurar e encontrar conteúdo original na tragédia. Então tá. 

Ver a imagens de adolescentes fazendo pose para o TikTok em águas fétidas de cidades gaúchas para exibir o quão fashionistas estão com roupas doadas não remete a coisa boa. Mas há quem discorde.