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Pesadelos reais

Pesadelos reais

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas, professora da Facom/UFBA e colaboradora da Rádio Metrópole

Pesadelos reais

Foto: Angeluci Figueiredo

Por: Malu Fontes no dia 18 de março de 2021 às 08:49

Nos pesadelos, naqueles que a gente tem dormindo, coisas, imagens, caras, quedas, assombrações e falas se sobrepõem, indiferenciadas. Quem nunca acordou debatendo-se, tentando reagir, falar alguma coisa? Mas eram só pesadelos e acordar bastava. Um ano depois de vida normal suspensa, agora tudo ou todo dia é pesadelo. As imagens não são oníricas. São tão reais que todos os dias entram para a história. 

Um ídolo do futebol não sabia para onde seus amigos o estavam levando, mas mesmo assim saiu para jantar, numa São Paulo fantasmagórica, com tudo fechado, restaurantes incluídos. Quando se deu conta, e ainda sem perceber nada, se viu arrastado pela polícia de debaixo de uma mesa, em um cassino, com mais de 200 pessoas em tempo de aglomerações proibidas. Foi achado uma hora depois de a polícia ter invadido o cassino clandestino. Tinha a cabeça encoberta por um blazer branco feminino e foi levado para uma delegacia. Insistiu em ir em seu próprio carro, milionário, mas foi obrigado a ir de viatura. 

Um ministro general confunde Amazonas com Amapá, manda vacina para o lugar errado e pergunta na televisão que raios o Ministério da Saúde tem a ver com a falta de oxigênio em hospitais — e com a consequente morte de gente sem respirar. Um quarto ministro da saúde é escalado, com o antecessor se dizendo orgulhoso do trabalho feito, em uma semana em que o país caminhava para 3.000 mortos por dia. O ministro novo garante continuidade, elogia tudo, diz não ter vara de condão e se limita a criticar aglomerações fúteis. 

GALINHA - Nas cidades mais ricas do país, como São Paulo, os ricos imploram por vagas de UTIs do SUS nos hospitais públicos. E não acham. Entre o terceiro e o quarto ministro, uma médica bem intencionada aparece, incensada pelas raposas do Congresso Nacional e questionando tudo. Por pouco não acaba morta em menos de 24 horas após seu nome pular em tudo o que era jornal, rede social e site. Recebeu ameaças, espalharam seu celular por redes de ódio, criaram contas falsas em seu nome e tentaram invadir o quarto de hotel onde ela estava hospedada, em Brasília. Nos pesadelos, nunca os quartos são invadidos para a entrega de flores e de boas notícias. 

Um jornal estampa na capa uma galinha branca de crista vermelho-sangue. A ave roubou a cena da pandemia, conta-nos o jornalismo. A galinha torna-se vedete numa UPA e passa na frente do número de mortos na hierarquia dos fatos locais. Uma crista vermelha e um bico, no meio de um pesadelo, podem ser o máximo de frescor que jornalismo consegue proporcionar. Na cena seguinte, a mesma galinha reaparece rodopiando em um vídeo nas redes sociais, como se agonizasse, com o bico apontando para o céu, a invocar ajuda celestial, ou, sabe-se lá, sob feito de algum psicotrópico. Consultados, veterinários apostam em diagnósticos: incoordenação do pescoço por doença de Newcastle, encefalomielite ou dor de ouvido. É o pesadelo ao redor.