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Terça-feira, 23 de abril de 2024

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Aldir Blanc: roteirista de um Brasil possível

Aldir Blanc: roteirista de um Brasil possível

Autor de clássicos como "O Bêbado e a Equilibrista", ele morreu nesta segunda-feira (4), vítima da Covid-19

Aldir Blanc: roteirista de um Brasil possível

Foto: Divulgação

Por: James Martins no dia 05 de maio de 2020 às 10:35

“O Brazil não conhece o Brasil / O Brazil tá matando o Brasil”, escreveu o letrista Aldir Blanc, morto ontem (4), vítima da Covid-19, bem no início da canção “Querellas do Brasil”, parceria com Maurício Tapajós e gravada por Elis Regina em 1978. Em outra música menos conhecida, “Baião de Lacan” (com Guinga), ele brinca na voz de Leila Pinheiro: “Eu fui a Limoeiro e encontrei o Paul Simon lá, tentando se proclamar gerente do mafuá”. E arremata: “Se o peão não chiá, o boi-bumbá vai virá vaca”. Profecias.

Em 1996, ano em que Aldir comemorou 50 primaveras, Décio Pignatari afirmou em entrevista sobre os 40 da poesia concreta: “Os cineastas brasileiros se recusam a filmar roteiros elaborados por outros. Resultado: o Brasil não tem, nem preza, os roteiristas, em qualquer área. Transponha-se o fenômeno para a MPB: ou o letrista-roteirista se mata (Torquato Neto), ou vira cronista de jornal (Aldir Blanc)”. Aliás, mesmo aí, em 2018, Aldir foi demitido do jornal O Globo, dizem que por divergências políticas.

E por falar em roteiro, o Brazil (e mesmo o Brasil) não dá sempre a impressão de “já vi esse filme”? Talvez por os diretores do país não valorizarem de fato seus possíveis roteiristas. Por outro lado, naquele mesmo 96, Dorival Caymmi, cantor das graças da Bahia, grande exportador de Brasil, disse: "Todo mundo é carioca. Mas Aldir Blanc é carioca mesmo". Esses versos foram lembrados (adivinhe onde? Acertou) no jornal O Globo de ontem, em artigo de Hugo Suckman batizado: “Aldir Blanc tornou-se como poeta a voz dos que não têm voz”. A voz do morto vale mais que a voz do vivo? Roteiros. Roteiros. Roteiros.

O caso é que, partindo do Rio no que ele tem de mais Brasil (Jayme Ovalle: “O carioca é um sujeito nascido no Espírito Santo ou em Belém do Pará”), o roteiro de Aldir aparece como cada vez mais necessário para que o Brazil deixe de falsificar o Brasil. A primeira música de adulto que meu filho João cantou inteira tem letra dele para melodia de João Bosco, seu parceiro-irmão: “Duro na Queda”. O final diz: “Mulata de olhos claros, vale o mundo. No morro é meu barraco com piscina”.

E aqui, o confronto se dá com o Brazil que, ao menos em tese, não nos invade pela mera via das elites, mas do Movimento Negro (voz dos que não têm voz) que, aderindo aos critérios das políticas raciais de Tio Sam & Cia, passaram a fingir que a mulata simplesmente não existe e estigmatizaram a altissonante palavra. É significativo que, ao evocar o Brasil na canção que abre esse texto, o letrista-roteirista recorra à força de palavras indígenas, mormente tupis. Mulato, em toda sua complexidade (incluindo confusão etimológica), bem que poderia constar na lista.

“Ah, como é difícil tornar-se herói. Só quem tentou sabe como dói, vencer Satã só com orações”, canta em sua primeira parceria com Bosco. Mas também, na canção mais famosa da dupla: “Mas sei que uma dor assim pungente, não há de ser inutilmente”. Aldir Blanc deixa uma obra extensa e magnífica, cheia de humor e lirismo. Poesia. “O Mestre-Sala de Mares” é um livro de história voando. São tantas que nem vale enumerar. Nana cantando “Resposta ao Tempo” fez e faz o Brasil (e até mesmo o Brazil) inteiro chorar: “Porque sabe passar, e eu não sei…”. Não sabe mesmo. Aldir Blanc não passa. Segue despertando paixões, para pura inveja das horas.