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A leifertização do Enem

A leifertização do Enem

Saindo da polêmica do texto sobre Marília Mendonça, está aí o Enem com a cara do governo, sem ditadura e sabe-se, até domingo, com o quê dentro, e Gustavo Alonso tem razão: o Brasil está unido novamente, desta vez nas críticas ao Enem

A leifertização do Enem

Foto: Reprodução Jornal da Metropole

Por: Malu Fontes no dia 18 de novembro de 2021 às 13:15

No reino da lacrolândia, acontecem coisas das mais improváveis. Por ter escrito em um texto analisando a carreira de Marília Mendonça que a cantora desafiara a lógica do mercado e se tornara o mito que foi mesmo sendo gordinha (sic), brigando contra a balança e com uma voz que não era isso ou aquilo, o historiador Gustavo Alonso foi linchado nas redes por todos os espectros ideológicos do país. Da extrema esquerda à extrema direita. Depois do massacre virtual à la carcará – pegado, matado, comido e cuspido -, Alonso escreveu um texto com uma frase antológica sobre os tempos de agora e seus consensos improváveis, construídos por vias esquisitíssimas. “O Brasil está novamente unido”. 

Referia-se ao fato de nomes que se odeiam entre si, como Manuela D’Ávila e Carlos Bolsonaro, terem compartilhado o mesmo julgamento contra ele, Alonso. Manu o execrou por considerá-lo misógino. Carluxo, por considerá-lo impren$a (sic). Estavam juntos, contra três frases do historiador, gente como Alexandre Frota (PSDB-SP) e Sâmia Bonfim (PSOL-SP), Carla Zambelli (PSL-SP) e Mariliz Pereira Jorge, jornalista da própria Folha. Alonso foi a Geni de Chico Buarque da semana passada. Luciano Huck também foi atacado, mas noutra escala. E pediu perdão público, por ter dito na televisão que, da última vez que vira Marília, ela estava magrinha (sic).

Como no mundo dos lacres tudo é efêmero e está sempre por um segundo, cortemos para a cena do instantâneo deste texto: as labaredas ardem em torno do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, cuja primeira prova, neste domingo, inclui a redação, um dos temas mais comentados do país. Às vésperas da prova, parte do corpo técnico responsável pela prova pediu demissão dos cargos que ocupava, alegando ingerência e intromissão no exame, por ordem do Ministério da Educação, comandando pelo pastor presbiteriano Milton Ribeiro. Com ar pastoral, circunspecto e sob aquele sorriso de fazendeiro do império vendendo terras para interessados em viver em campos bíblicos bucólicos, o ministro desmentiu tudo. Os técnicos teriam saído por intrigas financeiras. Queriam umas gratificações, não receberam, fizeram tromba e saíram. 

MACHADO DE ASSIS, O CHATO

A agonia que ronda professores e alunos que vão submeter-se à prova deve-se à insegurança quanto às mudanças de conteúdo, feitas às pressas, para atender ao gosto do bolsonarismo. Do tour pelo oriente médio, o próprio presidente Jair Bolsonaro confirmou, ao seu modo, que mudou mesmo questões do exame. O Enem, agora “terá a cara do governo”. Esse transplante de cabeça feito na prova implica, entre outras coisas, na insatisfação dos novos hóspedes do MEC quanto a expressões como ditadura militar. O certo é escrever na prova ‘regime militar’. Que ditadura? Nunca houve isso. Também é considerado de bom tom não haver questões sobre gays, racismo e um punhado de coisas do kit da polícia dos costumes sexuais e comportamentais. O presidente, os ministros da educação caídos e o de pé e o bolsonarismo de dedo em riste exigem que o Enem mude para caber dentro da cartilha conservadora, reacionária e, aqui e ali, negacionista.

Saindo da polêmica do texto sobre Marília Mendonça, está aí o Enem com a cara do governo, sem ditadura e sabe-se, até domingo, com o quê dentro, e Gustavo Alonso tem razão: o Brasil está unido novamente, desta vez nas críticas ao Enem. Quem fez troça do exame na mesma semana em que os bolsonaristas fizeram foi o jornalista Thiago Leifert. Em textão, falou da chatice e inutilidade de ler livros clássicos que caem na prova, e invocou Machado de Assis como o tipo de leitura que não serve para nada. Ele, bem formado que é, aprendeu mesmo foi estatística. Em suas muitas considerações sobre a própria formação, faltou contextualizar de que metro quadrado brasileiro vem e onde estudou (Estados Unidos). Sobre a chatice e a inutilidade dos clássicos, não está só. Fez coro palavras recentes de Felipe Neto, também um entediado e indisposto diante de Machado. Imagine o que acham de Dostoievski, mais velhinho, com 200 anos. Com tanta união dos extremos, quem sabe o MEC não chama Thiago para um choque de inovação do Enem. Depois da ‘leifertização’ do jornalismo esportivo, vai que algo parecido é possível para tornar o processo de entrada nas universidades públicas algo mais animado.