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Alvo de golpistas nos dias de hoje, testamentos eram fundamentais para o católico salvar a alma

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Alvo de golpistas nos dias de hoje, testamentos eram fundamentais para o católico salvar a alma

Há testamento indicando o pagamento por 11 mil missas para a alma do defunto

Alvo de golpistas nos dias de hoje, testamentos eram fundamentais para o católico salvar a alma

Foto: Agência Brasil/Marcelo Camargo

Por: Biaggio Talento no dia 17 de julho de 2025 às 10:26

Atualizado: no dia 17 de julho de 2025 às 10:55

Matéria publicada originalmente no Jornal Metropole em 17 de julho de 2025

A ação de golpistas na Inglaterra, que estão produzindo testamentos falsos simulando que falecidos lhes legaram suas propriedades, mostra que esse tipo de documento, registrando os últimos desejos de uma pessoa, sofreu uma grande transformação ao longo do tempo. Se nos dias de hoje, em muitos casos, não existe mais a preocupação de legar os bens a herdeiros, em papel passado em Cartório, nos séculos passados no mundo católico era possível até “administrar” o Além, como mostram antigos testamentos.

Nem mesmo os mortos estão livres
Recentemente, a agência de notícias BBC News publicou como funciona a ação de golpistas na Inglaterra que escrevem testamentos fakes indicando que falecidos supostamente lhes deixaram propriedades e recursos financeiros. O golpe é facilitado porque na Inglaterra e no País de Gales existe o registro online de propriedades não reclamadas que é chamado de Bona Vacantia ou bens vagos. Essa lista pode ser consultada por qualquer pessoa e é voltada para parentes de mortos (que não deixaram testamentos) reclamarem eventuais bens, além de empresas especializadas em localizar herdeiros que cobram pelo serviço, uma parte dos valores. Ocorre que os golpistas têm conseguido, com documentos forjados, a concessão do inventário e pagam o imposto de herança ao governo se apropriando dos bens.

Cartilha do bem morrer
No passado, o testamento era fundamental para o chamado “bem morrer”, apregoado no mundo católico pela Igreja. Isso porque através do documento o fiel podia listar seus últimos desejos, ou seja: admitir suas faltas, pedir perdão a Deus, gerenciar a distribuição de seus bens para saldar eventuais dívidas, premiar parentes e amigos, doar parte da herança para obras de sua igreja de devoção e detalhar como e onde queria ser sepultado. Tudo fazia parte da estratégia para salvar a alma.

A partir da Idade Média, com a consolidação da crença no Purgatório, os testamentos se tornaram uma espécie de “contrato de seguro” com o Além, nas palavras do historiador funerário francês Philip Ariés, autor entre outros do livro A História da Morte no Ocidente. Esse "contrato" permitia ao defunto usar parte ou todos os seus bens para deixar pagas milhares de missas em louvor à sua alma com o objetivo de abreviar o tempo dela no Purgatório. Pela doutrina da Igreja, era possível reduzir a pena da alma se para ela fossem rezadas missas de sufrágio, orações dos vivos e deixando recursos a instituições religiosas. Nos antigos testamentos, a pessoa nomeava um amigo, parente ou advogado que tinha a autorização legal para cumprir o que foi escrito.

Redenção na Bahia
Na pesquisa que realizei nos arquivos históricos de Salvador para a elaboração do livro A Economia da Salvação, encontrei vários testamentos de católicos que viveram na Bahia entre os séculos XVI a XIX e usaram o testamento como estratégia de redenção de uma vida pecaminosa. Um desses documentos é do comerciante Domingos José Martins, escrito em 1845, 19 anos antes de sua morte. Nascido em Salvador, fixou-se em Daomé (atual Benin), na Costa da África, tornando-se um dos maiores traficantes de escravizados de sua época e também fornecedor de armas para o exército do rei local. Somente na Bahia, a fortuna de Martins somava 163 contos de réis contando com propriedades, peças de ouro e os 25 escravos que possuía em Salvador.

No testamento de oito páginas e 22 itens escrito à mão, ele diz professar a religião católica, que nunca foi casado mas por sua “fragilidade” teve “cópula carnal com algumas mulheres” de quem teve seis filhos, os quais nomeou como herdeiros, além de reservar certa quantia para alguns parentes. Entre outros itens do documento, determina a libertação dos 25 escravizados e indeniza alguns deles. Para a Igreja do Boqueirão, situada no Centro Histórico de Salvador, deixa 4 contos de réis a serem aplicados em obras. E 2 contos e 500 mil réis para serem distribuídos aos pobres, da seguinte forma: “dez tostões para cada um” na portaria da Igreja de São Francisco, “preferindo os cegos e aleijados”. Para se ter uma ideia da fortuna de Martins, com 1 conto de réis se podia comprar duas casas amplas no centro de Salvador na época.

Milhares de missas
O testamento do traficante é de um período em que o católico se preocupava num tipo de restituição social de sua fortuna. Por isso não pede missas para a salvação da alma e tampouco indica solo sagrado para ser enterrado. Já o testamento de Domingos Gomes Bello, outro comerciante (que tinha negócios no tráfico com Martins), elaborado em 1855, revela mais preocupação com o Além. Começa da seguinte forma: “Em nome da Santíssima e Indivisível Trindade, Padre, Filho e Espírito Santo, em que eu Domingos Gomes Bello firmemente creio, como crê e ensina a Santa Igreja Católica Apostólica Romana em cuja Santa Religião, nasci, tenho vivido, pretendo morrer e salvar a minha alma, Remida com o Precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Christo”. Seguindo o receituário católico, como estava doente diz que “por medida de prevenção, resolvi mandar escrever esse meu solene testamento e disposições de última vontade para dispor dos meus bens como o permitem as leis”.

Depois de indicar a distribuição de dinheiro e propriedades a parentes, igrejas e instituições de caridade, manda celebrar “seis Capellas de Missas, [missa cantada] sendo três delas aplicadas por minha alma, que serão ditas dentro do menor tempo que for possível, e as outras três aplicadas pelas almas de meus pais, parentes e amigos, pagando de esmola por cada uma missa mil réis”.

Gestã direto do Além
Em relação aos testamentos dos séculos passados na Bahia, o pedido de missas de Bello é modesto. As disposições finais do agiota João de Mattos Aguiar, ex-provedor da Santa Casa de Misericórdia, contidas no seu testamento escrito em 1700, são exemplares de como era possível para o católico administrar seu Além. Ele deixou 132 contos de réis para a Santa Casa, pedindo em troca 11 mil missas por ano pela sua alma enquanto a instituição existisse, o que dá pouco mais de 30 por dia. Explicou como essas missas seriam financiadas: Dos 132 contos, 92 seriam usados para instalar um recolhimento para mulheres, dotes de casamentos para futuras internas e esmolas. Os restantes 40 contos seriam emprestados a juros que renderiam 2 contos e 200 mil réis por ano e esse dinheiro pagaria as 11 mil missas anuais. Ou seja, esse é um típico exemplo de como era possível administrar o Além depois de morto, isso porque, sendo o testamento um documento legal, o uso de parte da herança para financiar as missas (chamadas de "ônus perpétuo") teria que ser aceito pela instituição que só receberia a outra parte do dinheiro se contratasse e pagasse os padres incumbidos das celebrações.

Com o tempo, a crença no Purgatório foi diminuindo e o mais comum nos dias de hoje é homenagear os defuntos católicos com uma missa de corpo presente, outra de 7º dia e uma anual, em memória do ente que partiu.