Quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Faça parte do canal da Metropole no WhatsApp

Home

/

Notícias

/

Jornal da Metropole

/

Grandes redes redefinem o papel da farmácia, transformando saúde em lógica de consumo

Jornal Metropole

Grandes redes redefinem o papel da farmácia, transformando saúde em lógica de consumo

Com descontos fantasiosos, grandes redes de farmácia transformam medicamentos em produtos de consumo e não de saúde, enquanto sufocam pequenas drogarias

Grandes redes redefinem o papel da farmácia, transformando saúde em lógica de consumo

Foto: Metropress/Gabriela Barroso

Por: Laisa Gama no dia 14 de agosto de 2025 às 09:31

Atualizado: no dia 14 de agosto de 2025 às 14:37

Materia publicada originalmente no Jornal Metropole em 14 de agosto de 2025

Nas ruas e esquinas de Salvador e das principais cidades brasileiras, canais chamativos de promoção acendem e oferecem “descontos imperdíveis” nas farmácias. Mas, por trás do suposto benefício e da onda que só na capital baiana fez o número de drogarias multiplicar por oito nos últimos 25 anos, se desenha um tecido complexo que vai muito além de descontos e estratégias mercadológicas à custas de privacidade, mistura ainda riscos à saúde coletiva, o fenômeno da medicalização da vida e a penosa sobrevivência de pequenos negócios.

Consumo em detrimento da assistência

A sede por vendas de medicamentos – refletida nos descontos massivos via CPF – eleva um cenário já claro de medicalização da população: tudo é resolvido com cápsulas e comprimidos. Junto com esse fenômeno vem o lucro para os grandes grupos de farmácias, claro, mas também o risco de efeitos adversos, interações medicamentosas e o agravamento de doenças. O alerta é do médico sanitarista Gonzalo Vecina, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que aponta nas grandes redes de farmácia uma visão de remédios como produtos de consumo e não de assistência. 

“As grandes redes vivem de esticar a corda o quanto podem. O supermercado não pode vender remédio, mas hoje está uma discussão muito grande no sentido dos supermercados poderem vender os medicamentos que são isentos de prescrição. Quer dizer, nós estamos tratando o medicamento como um produto de consumo e não como um produto de saúde pública”, critica o médico sanitarista Gonzalo Vecina.

Foto: Metropress/Gabriela Barroso

Receita do lucro

“Compre duas caixas, leve três”. As estratégias de venda das farmácias apostam em uma lógica de consumo puramente mercadológico, como se fosse qualquer outro produto. É criado uma equivalência, por exemplo, entre medicamento e gênero alimentício, “se compra mais, paga menos, é isso que importa”. Como se já não bastassem os descontos via CPF, vêm as promoções por volume de compra – uma brincadeira com o preço dos remédios que, claro, incentiva a automedicação. 

A saída é uma só. Segundo Gonzalo, a única alternativa para mudar esse cenário é transformar as farmácias em estabelecimentos voltados para a assistência farmacêutica, com políticas que garantam o acesso ao medicamento de forma tão universal quanto o acesso ao ato médico, como deveria ser.

Parcerias no Congresso

As discussões sobre os impactos dessas estratégias de venda das farmácias ainda se arrastam e carecem de mais maturidade. A análise é do deputado Chico Alencar (Psol-RJ), que enxerga esse modelo de comercialização das grandes redes como “um escândalo”. O motivo, segundo ele, para a dificuldade de avançar com soluções é o lobby da indústria farmacêutica, que ainda detém poder em larga escala no Congresso.

“É um abuso de poder das grandes farmacêuticas. É incompatível com a verdadeira busca da saúde pública”, afirma. E complementa: “Eu diria que o debate é feito de maneira muito superficial no parlamento. Qualquer tipo de regulamentação é vista como autoritarismo. Por trás disso, há, claro, sempre um lobby fortíssimo e muitos interesses ocultos em jogo do setor da saúde que é muito mercantilizado no Brasil”, explica.

É verdade que o Congresso Nacional até intensificou o debate sobre a regulamentação das práticas comerciais nas farmácias, especialmente no que diz respeito ao uso de dados pessoais e à transparência dos descontos oferecidos. Entre os projetos em tramitação, destaca-se um que pretende proibir a exigência do CPF para que os consumidores tenham acesso a descontos e vetar o compartilhamento desses dados com terceiros. À parte, os parlamentares também discutem a obrigatoriedade de informar de forma clara e visível o Preço Máximo ao Consumidor (PMC) nos estabelecimentos, como forma de evitar práticas enganosas e garantir maior segurança ao comprador. Mas a velocidade das discussões ainda não acompanha os riscos e muito menos o lucro do setor.

As grandes redes tomam tudo

O grande varejo farmacêutico movimentou R$ 103,14 bilhões no ano passado, cifras que representaram um crescimento de 14,2% em comparação a 2023.

Um levantamento feito pelo Sebrae, a partir de dados da Receita Federal, apontou que atualmente no país há 122 mil farmácias. E, apesar de mais de 80% delas serem micro e pequenas empresas, são as grandes redes que conseguem capitanear a maior parte do faturamento envolvido no meio. Essa concentração se divide em três grandes grupos – Grupo RD (Raia e Drogasil), Grupo Pague Menos (Pague Menos e Extrafarma) e o Grupo DPSP (Pacheco e São Paulo) – e tem tudo a ver com os fantasiosos descontos ofertados.

Nas pequenas farmácias, onde o CPF não é necessariamente a chave para o paraíso dos descontos, a sobrevivência tem sido penosa. O proprietário de uma drogaria que atua no bairro da Fazenda Grande do Retiro há seis anos resume o desequilíbrio: “é muito difícil, porque as oportunidades que as grandes têm, as pequenas e médias farmácias não têm”. Diante disso, elas recorrem a estratégias de sobrevivência, como investir na venda de medicamentos genéricos (onde conseguem maior desconto do fornecedor) e até mudar de pontos onde há forte presença das redes – o que tem sido cada vez mais comum nas ruas de Salvador.

Foto: Metropress/Gabriela Barroso

Troca-se CPF por desconto fantasioso

Na prática, as oportunidades que o proprietário se refere são as possibilidades de desconto para o cliente. As grandes redes compram diretamente da indústria farmacêutica, sem intermediários, por isso já saem com um preço mais vantajoso, por isso as promoções de “compre duas caixas e leve três”. Só que, além disso, eles usam de brechas na legislação para oferecer descontos ainda maiores e alimentar outra parte de seu negócio e lucros.

Tudo começa quando você chega à farmácia, escolhe um produto e ouve aquela mesma  pergunta que já virou rotineira: “CPF para receber desconto?”. Muitas vezes, não chega nem a ser pergunta, é uma intimação: “CPF, por favor”. O fornecimento do dado é automático, quase instintivo, afinal quem não quer um desconto tão expressivo? Tem medicamento que de R$ 422 passa para R$ 166. A pergunta parece inofensiva e o benefício irresistível, mas é, na verdade, a chave de entrada para um modelo de negócio que pouco tem a ver com saúde e muito com lucro.

Isca comercial

Para quem já acompanha o caso do “fantasioso desconto do CPF”, a explicação não é novidade. Mas se você chegou agora, acompanhe a aula:

A condição de fornecimento do CPF para expressivos descontos nas grandes redes é nada mais do que isca para montar um perfil detalhado de cada consumidor e comercializar esses mesmos dados para outras empresas usarem e acessarem como bem entenderem – na maioria das vezes, como grupos de audiência para enviar anúncios e propagandas. 

Provavelmente, no seu perfil montado a partir de suas comprar, uma dessas grandes redes deve ter informações sobre você, como seus medicamentos rotineiros, se você se preocupa com a aparência, sua frequência sexual, a idade de seu filho ou se está evitando engravidar. Tudo isso é valioso para empresas que querem divulgar seus produtos.

A RaiaDrogasil, maior rede do país, é um exemplo clássico: tem em seu guarda-chuva de empresas a RD Ads, especialista em marketing, que promete unir empresas a suas audiências e faz isso por meio dos dados coletados em seus balcões. O próprio CEO da RD Ads já reconheceu, em entrevista a um podcast, que se fosse nos Estados Unidos, o dono que pedisse CPF ao cliente sairia preso da farmácia. Porque lá, há uma série de normas rígidas no tratamento de dados.

Tirando vantagem da distorção legal

O abismo entre o preço real e o suposto desconto é explicado não só a partir do lucro arrecadado pela negociação com os dados do cliente, mas também pelo chamado Preço Máximo ao Consumidor (PMC). Segundo o Idec (Instituto de Defesa dos Consumidores), a diferença entre o valor final com “desconto” e o teto oficial de preços estabelecido pela CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos) pode chegar a quase oito vezes. Isso acontece porque o PMC funciona como um limite oficial de preços de cada remédio, mas é muito acima do valor de produção do medicamento e também do valor real de comercialização. 

Assim, a farmácia pode jogar o preço lá em cima, ainda sem atingir o PMC, e aplicar o desconto após entrega dos dados, se aproximando um pouco mais do valor real do produto. Ou seja, o preço justo fantasiado de desconto irrecusável.

Quando o CPF vira alvo comercial

Professor da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal da Bahia, Genário Oliveira, lembra que não há hoje nenhuma regulamentação que proíba o estabelecimento de solicitar esses dados para fins de cadastro. Por outro lado, o Procon (Programa de Proteção e Defesa do Consumidor da Bahia) pontua que “nenhum consumidor é obrigado a fornecer seus dados pessoais como condição para acessar descontos ou promoções”.